4.8.04



[Alberto Giacometti fotografado por Henri Cartier-Bresson]
Maria Filomena Mónica revela hoje, no Público, "O Diário Secreto de Santana Lopes com a Idade de 48 Anos", onde, às tantas afirma: «(...)o Prof. [Boaventura] Sousa Santos declarava estar "Portugal no grau zero das alternativas". Se fosse a ele, estava caladinho. Caso contrário, ainda divulgo os poemas que publicou, num livrinho chamado Têmpera, editado pela Centelha, em 1980, sobre as "rachas das meninas".»

Antecipando a ameaça, passo a transcrever, do referido livro, um excerto (o poema é longo...) da

ODE À INFÂNCIA

(...)
são muitas as horas da tarde
quando as mãos do último cigarro
esfregam em louro
o triunfo sobre a autoridade
a moral escarpada da verdura
resvala dos cerros como a lua nova
alagada de medo
escancaram-se as cancelas
das secretas construções
nas ruínas do ciclone de quarenta
trabalhos manuais sem mestre nem montra
entram chefes guerras caracóis
tesouras e pauzinhos
nas rachas das meninas
na catequese é em coro
e em filas
no escuro dos intervalos
medem-se as pilas
Boaventura tens quebranto
dois te puseram três te hão-de tirar
se eles quiserem bem podem
são as três pessoas da Santíssima Trindade
que é Pai, Filho e Espírito Santo
mexo nos anos sinto nas mãos
a moleza da cera não fere
alastra
(...)

[o livro em questão é o nº 33 da colecção Nosso Tempo, que foi antecedido por Afluentes de Abril do conhecido advogado Celso Cruzeiro - apesar disso dessa colecção também fazem parte livros notáveis da poesia portuguesa dos anos 70]

3.8.04

MARGUERITE DURAS

- Despache-se a falar. Invente.
Ela fez um esforço, falou quase alto no café ainda deserto.
- O que seria preciso era habitar uma cidade sem árvores as árvores gritam quando há vento aqui há sempre sempre à excepção de dois dias por ano no seu lugar está a ver eu iria embora daqui não ficaria aqui todos os pássaros ou quase todos são pássaros do mar que se encontram mortos depois das tempestades e quando a tempestade pára e as árvores deixam de gritar ouvimo-los gritar sobre a praia como degolados isso impede as crianças de dormir não eu ia-me embora.
Ela deteve-se, os olhos ainda fechados pelo medo. Ele olhou-a com uma grande atenção.

(excerto de Moderato Cantabile, 4ª ed.: Difel, 2002 - tradução de Flora Larsson e Ana Paula Laborinho)

2.8.04

JOSÉ AFONSO

Por Trás Daquela Janela


Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão

Não pôs cravos na lapela
Por trás daquela janela
Nem se ouve nenhuma estrela
Por trás daquele portão

Se aquela parede andasse
Se aquela parede andasse
Eu não sei o que faria
Não sei

Se a minha faca cortasse
Se aquela parede andasse
E grito enorme se ouvisse
Duma criança ao nascer

Talvez o tempo corresse
Talvez o tempo corresse
E a tua voz me ajudasse
A cantar

Mais dura a pedra moleira
E a fé, tua companheira
Mais pode a flecha certeira
E os rios que vão pró mar

Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão

Na noite que segue o dia
Na noite que segue o dia
O meu amigo lá dorme
De pé

E o seu perfil anuncia
Naquela parede fria
Uma canção de alegria
No vai e vem da maré

Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão

Não pôs cravos na lapela
Por trás daquela janela
Nem se ouve nenhuma estrela
Por trás daquele portão

(do álbum Eu vou ser como a toupeira, 1972)

1.8.04

[Faz hoje 27 anos que morreu o cardeal Cerejeira]

MÁRIO BEIRÃO

FALA DUM PASTOR
(NA GRANDE FESTA DE BEJA)


(Ao Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira)

Aqui, neste solene descampado,
- Plaino de cismas e melancolia -
Tudo se volve a Deus; tudo irradia
Graça, Esperança, Espírito Sagrado:

E, nos sulcos abertos pelo arado,
Germina luz, um sonho, um novo dia;
E, do ocaso na mística elegia,
Brilham as chagas do precioso Lado!

Esta é a planície, que o silêncio embala,
- A grã planície, resplendente de oiro...
Que ela desperte ao som da vossa fala!

- Ó Príncipe da mais augusta igreja,
Por vosso influxo, a um gesto imorredoiro,
O pão do amor multiplicado seja!

(de O Pão da Ceia, edições Ática, 1964)


JORGE DE SENA

De púrpura andas vestido
Que Roma te concedeu
para que humilde defendas
o direito dos humildes
em Terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!

Mas a mitra que te cobre
não te dói mais que os espinhos
na cabeça do teu Mestre.
Doem-te os cornos dos ricos
das terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!

9 de Dezembro de 1956

(de Dedicácias, Três Sinais editores, 1999)