11.1.14

[no dia em q completa 88 anos] 

JÚLIO POMAR


XXI

Pode pensar-se claramente pensado
que muitas senão todas as palavras que teimam
na parva intenção de domesticar um a um os mistérios do mundo
fazem a diferença entre uma coisa e outra na busca
do seu ser próprio, do próprio a cada uma
(passando em branco o sentido de ser, se é que o ser o tem
e o que ele diz de si próprio e sobre si próprio pensa):
eu ia a sugerir que as palavras todas mesmo
as mais levezinhas e precisas
são crostas de feridas em nós feitas
pelo roçar pelos outros ou por
nós próprios como por áspera e ignota parede.
As palavras são o barro com que modelamos o sarro
que em nós se vai depositando da
face e avesso do mundo
(que é pelo avesso que o mundo nasce e nele
o que à face aflora, galbo ou fenda).
Este é o direito
da palavra, a face que ela mostra mas
ao mostrá-la insinua que
pelo avesso sente o vício
de pedir a esmola de um catre na
grande caserna onde a comunicação arruma
as suas forças de intervenção rápida.



(de TRATAdoDITOeFEITO, publicações Dom Quixote, 2003)

6.1.14

MARIA ESMERALDA MENDES


ELE ABRIU o pequeno armário e tirou de lá uma garrafa, e abrindo-a avançou para mim. «E agora fale-me de si». Tive que lhe explicar que nada tinha para lhe contar de mim. Houve um momento de silêncio.
Toda esta situação parecia ridícula. Sou efectivamente muito estúpida, encontrava-me sentada junto à porta. Perto dele o tempo eram horas. Tudo isto porque eu e o Zé estávamos numa situação financeira muito grave.
Quando o copo foi acabado de encher, levantei-me. O meu movimento era de uma pessoa cobarde. E pensei que efectivamente era fêmea, mas com colhões na cabeça. Os remorsos tomaram-me a garganta, bruscamente acabei de beber o que estava no copo. «Escute, disse-lhe, não pense mais no que lhe pedi». Ele não quis escutar nada do que lhe dizia. Eu tão pouco estava interessada. «Sabe? Eu não sou assim tão pobre», e sorri.
Detesto histórias. Prefiro o silêncio calmo das ruas nocturnas desta cidade nua.
Quando no fim me acompanhou à porta, senti-me outra.
Na minha carteira apenas papéis inúteis.
Não! Já estou farta. A mesma história todos os dias.
Tinha fome (pensava como é que se pode escrever com fome, mas a verdade é que se pode. Acho que li em qualquer parte, numa biografia de um escritor, desses muito conhecidos do nosso meio intelectual. E para quê ler biografias? O facto é que neste momento o estômago começa a exigir, e eu nada tenho para lhe dar).
Entro no café, e num esforço consciente tiro uma folha de papel da minha carteira, e, como nunca, começo esfericamente a evocar tudo o que seria capaz para que o meu nome surgisse um dia como ponto indefinido neste tipo de desastre que te acompanha e me acompanha. «Alguém terá que pagar esta bica». Toda esta miséria, este drama de uma raça marginal que pretende sair da merda, e toda esta divagação quase homérica, os males de África, da Ásia, os tuberculosos, os Manuéis de Castro! Pobre amigo, quem é que se lembra de ti? Aristophane ligado aos seus pássaros, Joyce agarrado ao seu Ulisses... Os dramas familiares. Um escritor que se suicida (porque não queria compromissos), Lutero, os católicos, e, numa raiva, o pai que mata a filha porque esta se recusou a fornicar com ele. Que dramas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo.
— E quem vai pagar esta maldita bica, que o senhor Simões acabou de trazer e eu já vomitei?
Era já noite quando cheguei ao meu quarto, Zé ainda não tinha chegado, isso poupava-me a explicações. Atirei-me sobre a cama e busquei o sono. Adormeci.


(terceiro capítulo de Rigor Mortis, edição da autora, 1982)

5.1.14

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


SOBRE UMA FOTOGRAFIA DE NUNO FERRARI

Há um homem que caminha contra o movimento do Mundo.
O trabalho, a pressa de chegar, o jogo das obrigações, deixam-no, por agora, indiferente.
Ele vira as costas ao trânsito da Vida e caminha para a máquina, para o magnésio que lhe dará a revelação duma serena amargura.
A sua Vida está suspensa nesse momento preciso.
Lesionado, impedido de jogar, toca nele, dentro dele, uma música triste.
Por isso se afasta do rio, do silêncio da água ou da neblina da manhã já alta.
As colunas do cais são um termómetro gigante a medir a amargura duma exclusão.

Há um homem que caminha contra o movimento do Mundo.
Apanhado na trama secreta dum acaso infeliz, desloca memórias de tardes entre sol e pó, à procura dos longos abraços dos companheiros a correr do outro lado do campo.
Por isso não olha de frente a objectiva, não se enquadra nas sombras, nas rugas, na duvidosa estrada do futuro.
Imaginamos que ao lado passaram aves, rápidas, tensas, como urgentes vírgulas no tempo deste homem. Passam ou passaram a caminho do Sul mas este homem não teve a esperança do calor, nem do sal das praias ou do corpo efémero das ondas.
O seu olhar era amargo, demasiado real para o magnésio da verdade, demasiado forte para a revelação dum pequeno mundo a ser destruído.


(de Mesa dos Extravagantes, O Mirante, 1996)