6.1.14

MARIA ESMERALDA MENDES


ELE ABRIU o pequeno armário e tirou de lá uma garrafa, e abrindo-a avançou para mim. «E agora fale-me de si». Tive que lhe explicar que nada tinha para lhe contar de mim. Houve um momento de silêncio.
Toda esta situação parecia ridícula. Sou efectivamente muito estúpida, encontrava-me sentada junto à porta. Perto dele o tempo eram horas. Tudo isto porque eu e o Zé estávamos numa situação financeira muito grave.
Quando o copo foi acabado de encher, levantei-me. O meu movimento era de uma pessoa cobarde. E pensei que efectivamente era fêmea, mas com colhões na cabeça. Os remorsos tomaram-me a garganta, bruscamente acabei de beber o que estava no copo. «Escute, disse-lhe, não pense mais no que lhe pedi». Ele não quis escutar nada do que lhe dizia. Eu tão pouco estava interessada. «Sabe? Eu não sou assim tão pobre», e sorri.
Detesto histórias. Prefiro o silêncio calmo das ruas nocturnas desta cidade nua.
Quando no fim me acompanhou à porta, senti-me outra.
Na minha carteira apenas papéis inúteis.
Não! Já estou farta. A mesma história todos os dias.
Tinha fome (pensava como é que se pode escrever com fome, mas a verdade é que se pode. Acho que li em qualquer parte, numa biografia de um escritor, desses muito conhecidos do nosso meio intelectual. E para quê ler biografias? O facto é que neste momento o estômago começa a exigir, e eu nada tenho para lhe dar).
Entro no café, e num esforço consciente tiro uma folha de papel da minha carteira, e, como nunca, começo esfericamente a evocar tudo o que seria capaz para que o meu nome surgisse um dia como ponto indefinido neste tipo de desastre que te acompanha e me acompanha. «Alguém terá que pagar esta bica». Toda esta miséria, este drama de uma raça marginal que pretende sair da merda, e toda esta divagação quase homérica, os males de África, da Ásia, os tuberculosos, os Manuéis de Castro! Pobre amigo, quem é que se lembra de ti? Aristophane ligado aos seus pássaros, Joyce agarrado ao seu Ulisses... Os dramas familiares. Um escritor que se suicida (porque não queria compromissos), Lutero, os católicos, e, numa raiva, o pai que mata a filha porque esta se recusou a fornicar com ele. Que dramas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo.
— E quem vai pagar esta maldita bica, que o senhor Simões acabou de trazer e eu já vomitei?
Era já noite quando cheguei ao meu quarto, Zé ainda não tinha chegado, isso poupava-me a explicações. Atirei-me sobre a cama e busquei o sono. Adormeci.


(terceiro capítulo de Rigor Mortis, edição da autora, 1982)

1 comentário:

RC disse...

Afinal havia um blogue!
Gostei de ver e sobretudo, de ler.