24.11.07

LUIZA NETO JORGE


I


O poeta é um animal longo
desde a infância



II

Começaria por ser
um movimento lento sob a treva



III

Povoadas estão as salas
por crias não humanas
roedoras criaturas
causticando



IV

Vinde animais míticos
ou os místicos com seu santo atento
os que escoiceiam no pino do outono
hermafroditas
raptores de mulheres
os procriadores de crianças
os heráldicos
tampas de caixão
os homens por equívoco
os voadores voláteis
súcubos
satanazes
vinde selvagens animais
dentro dos ossos
vorazes



V

Não aceito as classes zoológicas
nada que lhes facilite
a tão terrestre permanência
tão aérea tão aquática
tão misteriosa tão cósmica
circulação
a tão cheia de facilidades naturais
de naturais dons da natureza
dos prados dos rochedos das águas doces
das almofadas

Entre deitar-me e levantar-me
sento-me ajoelho-me acrobato
aprendo uma infinidade de gestos que
me conduzem a um sem número de situações
mais densas
e umas impiedades do corpo e quantas
duras dores de dentes
transportadas ao espírito que me eliminam
do outro reino animal

Um animal (qualquer)
se alça a pata espessa sobre o mundo
atormenta


(da sequência Outra Genealogia, in O Seu a Seu Tempo, 1966)

23.11.07

JOSÉ TERRA

O vocábulo exacto, os capilares
por onde passe o vento e o sangue,
o líquido solar ou este súbito
desejo de extermínio.

Assim, quando vós, palavras hirtas,
estalardes, e meu canto for
fragmentos dispersos sob a cinza,
- Adeus! oh barcos onde nunca fui,
ameias onde resisti.

(de Canto Submerso, Portugália editora, 1956)

22.11.07

JOSÉ SARAMAGO

O primeiro poema


Água, brancura e luz da madrugada,
E nardos orvalhados, olhos tardos,
E regressos de longe, lentos, vagos,
De espiral que se expande, ou nebulosa.
Assim diria que o mundo se criou:
Gesto liso das mãos do universo
Com perfumes e auras que anunciam,
Noutras mãos de quimera, outro verso.

(de Provavelmente Alegria, 1970)