23.2.07

Neste dia em que se completam 20 anos sobre a morte de José Afonso só me ocorre remeter para o que postei aqui há dois anos. (e, já agora, para as canções e poemas dele que por aqui têm passado)

21.2.07


próspero saíz

O SILÊNCIO DE LASCAUX


Sou o cavalo arcaico e
nada me está interdito
animal sonho amortalhado
mergulhado na noite
imperscrutável tempo perdido
escuro ritmo animal
a negra juba dançando
o cavalo vermelho correndo ainda
negrume medonho
silêncio e temor sagrado
piso o solo animal
na caverna escura do pavor e do temor
regresso ao meu destino primeiro...

cascos e chifres silentes
figuras gravadas
sou eu o cavalo pintado!
de olhos mutilados
tremeluzir de chamas
tocha paleolítica
fumo na pedra
cavalo vermelho correndo
cavalos castanhos correndo
delicados "cavalos chineses"
cavalinhos pequenos e cabras alpinas
o vigor do toiro
obscura luz do desejo
passos mortais da dança
ocultos nas máscaras do homem...

não temo o animal
não temo o homem sem jeito
sou o cavalo a galope
sinto o cheiro do negro toiro
as minhas narinas ávidas
dançam-lhe por entre os chifres antigos
as minhas ancas esgueiram-se por entre
a magia da pedra pintada:
a juba fofa e o brilho fulvo
o gesto de monumento da cabeça robusta...

mas ao sonho do homem falta-lhe a força
não tolera o movimento do cavalo
não tolera os jogos de cascos e juba
não tolera as profundezas do tempo-do-cavalo
e por isso se precipita no futuro torturado...

porém no silêncio de lascaux um hálito se sente
e nasce um deus no pavor dos homens pintores...

os negros ouvidos e olhos doirados do cavalo ruivo
a juba espessa e o peito pesado (ressonâncias do nosso sonhar)
escuros cascos e pernas hirtas penetrando o nada
a cabeça em liberdade apontando para o fundo nada
um relincho de pânico na boca escancarada - obra do homem -
nosso sonho arrebanhado na rocha até à beira do abismo
que conseguiram captar os pintores ausentes?
inaudito galope em tropel do pujante garanhão
resplendor animar recusando a orla da humana passada...

no silêncio de lascaux esvai-se uma luz trémula
do lado de fora da caverna ainda estão os ossos da matança
vestígios de massacres por entre os penhascos de pedra
e por entre as ossadas equinas tropeçam póneis atarracados
nos braços ténues do temor sagrado do cavalo...

(tradução de Maria Irene Ramalho, in Limiar - revista de poesia, 7, 1996)

19.2.07

JOSÉ ÁLVARO AFONSO

MUSA 1


Se diz: - chamarei falcões mas não
Irei ao campo, pensa em concreto e
Torres de ruído e sombra?
Cegos pela premência
Falcões são aço, estiletes, ângulos

Rectos de concentração e fúria

Nas ruas da cidade há poços
De lama e irrisão mas é
Na limpidez vertical do que está
Sujo que surpreende
A irisação do que é humano


MUSA 2

Entregue às musas de rapina
O destino busca – seu olhar
Amplo e concentradas asas
A curva do concreto no voo essencial

A filigrana dos gestos dança terrestre
Dueto de tempos longos e segundos
Deslumbres na comoção de ver
Poliedros na superfície lisa de uma laje


MUSA 3

Se lhes disser adeus
De onde virão, alinhados, os helicópteros
Da imaginação? Ainda que as guarde
Como no futuro em dicionários se resfriam
Tão breves como o horizonte
De vê-los - os helicópteros -


MUSA 4

Diz-me em quantos quartos dividiste a minha alma
Onde estão os pés de caminhar que deixei esquecidos?
Quantas são em chamas as agulhas as rosas as enxadas?

Crescem ervas no templo que não vou mondar
E sei que estás inclinada sobre o colo de outro
Mais atento. Não queres dar-me mais - as que
Uso para descansar minha cabeça no tempo?

Leva-me à tua quinta. Deixa que ignore os nomes
Dos teus
Frutos. Dá-me o sumo e o veneno que ela tenha


MUSA 5

Diz-me da surdez em que me fundes
Digo-te que as que salvam vidas que perdoam
E recolhem os náufragos nas casas
Dos amigos e nos adros das igrejas
Estão em agonia

(de entre passos sobrevivem eras, edição do Autor, 2006)

18.2.07

FERNANDO GUEDES

O CAULE

III


Vinte e quatro vidas por segundo
alimentam a vida.
O ser impassível fia suas relações
e na sólida teia suporta a existência.
Intactas, as coordenadas definem
o fluir rítmico.
Move-se a paramécia oscilando
entre obstáculo e alimento.
A carraça, suspensa do arbusto,
espia sua vítima,
homem ou bicho.
A gralha aguarda inquieta
o salto do gafanhoto.
A toupeira defende o seu lar
e a pátria.
Tempo e espaço são obra do sujeito.

Na cidade, na planície,
a lâmina quebrada reconstrói-se.
Ataste-a com teus braços fechados,
alteia-la no vento - da brisa ao ciclone -
para a soltares num riso sem fulgor,
fundindo num só ocidente e oriente,
e lâmina e volante reprendem a máquina
e o carro e suas rodas se libertam
da humidade granítica.

Na sombra
centríolos e dictiossomas receosos
suspendem o seu curso enigmático.
Não há recuo ou progresso.
Contrai-se o espaço
e a suspensão forçou um arrepio
na terceira estrada do longo Paraíso.

(de Caule, Flor e Fruto, editorial Verbo, 1962)