21.11.08

LÍDIA JORGE

(...) E o cantoneiro disse. Às vezes costumo dizer. Amo as palavras bonitas, mas quando ouço certas coisas, ah punhão, apetece-me ir buscá-las ao fundo das tripas e do buraco que se chama recto. Ninguém. Ninguém se liberta de nada se não quiser libertar-se. E ainda disse. Mas aqui. Aqui ficam todos pelo desejo das coisas. Ah traição. (...)

(excerto de O Dia dos Prodígios, 1980)

16.11.08

[para lá de todas as razões. para cá de toda a Amizade]

ANA SALOMÉ

Ode da rapariga no quarto


aqueles corações honestos corta-se pelo frio
não têm o beneplácito do sol nem a solução
da ferocidade da lua e moram em corpos tristíssimos
peões incapazes de saltarem para o cavalo
que os levasse à torre. moram em mentes
de artistas da rua da amargura
em filhos únicos que morrerão sem descendência
em poetas que não têm Shelley como advogado
e que a idade começa a pesar no de outrora ouro esbanjado.

a honestidade da impenetrável neve
a descer num balão de ar frio sobre o quatro de rapariga
com a decoração da adolescência
o urso em cima do guarda-roupa
a secretária com os dicionários
aquele lugar que a torna inabitante
incapaz de adequar um corpo que cresceu com formas
e sem forma de ser de novo expelido.
a beleza do cheiro que há nas flores
que há no recôndito calor do corpo às sombras consigo
a acumular o pó que seria só dos móveis
aquele corpo deitado como se pousasse para Matisse
num fim de tarde e meticulosamente
retirasse o coração e o pusesse na cabeceira
alegando o descanso cinco minutos só
que a acordasse no fim do quadro
ou no fim da vida cinco minutos só
de absoluta nudez.

(de odes, editora Canto Escuro, 2008)

Entretanto...

Entretanto...