22.9.03

VASCO MIRANDA

Vasco Miranda é padre. E não pretende ser um «príncipe dos poetas», como quase todos os poetas se pretendem, mesmo os de condição poética proletária. Posto o que me suspendo, a ouvir o correr de livros que se fecham. E com os que ficarem ainda abertos vou continuar. Direi que os que me acompanham se não arrependerão?
Porque a seu modo, Vasco Miranda é único entre os nossos poetas de hoje. Vem-lhe tal singularidade não apenas de resolver a sua poesia, apesar de padre, num domínio terreno em que podemos reconhecê-lo da nossa condição humana - mesmo aqueles dentre nós que lhe não entendemos a fé -, mas ainda porque os seus versos lhe exprimem uma «aprendizagem» adentro mesmo da dimensão dessa «fé».

(Vergílio Ferreira, no prefácio a Dizer, Amar)

(...) A sua poesia veemente e indignada, ou de uma cruciante pungência sempre apaixonada, que se espraia em alguns dos mais belos versos livres portugueses que têm sido escritos em português (...), é de uma expressão directa, que apenas se preocupa com um desataviamento total e uma limpidez que atinge tons de profetismo bíblico. Menos paradoxalmente do que poderia parecer, este católico e sacerdote é, com as suas grandes qualidades humanas e o seu desembaraço apaixonadamente lírico, talvez o melhor exemplo actual de um catolicismo moderno, que encontra acentos vigorosos para dizer o que certo neo-realismo só frouxamente realizou. (...)
(Jorge de Sena, nas Líricas Portuguesas, II volume - texto provavelmente de 1975)

Nasceu em 1922, em Junça, aldeia do concelho de Almeida.
Foi ordenado padre em 1943.
Morreu em 1976.


PALCO

Dadas as mãos,
Enlaçados os dedos,
Unidos os destinos,
Ficámo-nos extáticos, frente ao altar do universo,
Como se fora no princípio do mundo!...

- No começo da Vida!

Um canto de ave, ante a manhã, voou sobre as nossas cabeças
E perante o Sol que rompia no horizonte largo
Gozámos o poema inédito do Primeiro Dia,
Renascido das cinzas dum mundo velho e apodrecido
Como Eva redentora saída das costas inconscientes do novo Adão.

(de Luz na Sombra, 1946)


HISTÓRIA PARA OS NOVOS

Porque pudemos, enfim,
Mudar o ritmo da vida,
Olhando as coisas de alto,
Lídia e eu passearemos de mãos dadas
Todas as tardes, ao cair da noite.
Haverá risos à nossa passagem
Se bem que não andemos reinventando o paraíso.
(O poeta Rimbaud, esse, sim, quis reinventar o amor!...)
Mas não importa.
Indiferentes aos olhos cúpidos e aos risos escarninhos
- Poeta e Musa -
caminharemos seguros de nosso gesto
certos de não sentir o gosto amargo da maçã.

(de A Vida Suspensa, 1953)


Olha Jorge quando vier a morte
E virá cedo
«Não deixes fechar-me os olhos»
Eflorescências salitrosas me rebentarão das órbitas
Para queimar as mãos que fechar-mos queiram
- Não pode a luz negar-se a quem bêbado dela
Inventou em cada dia uma madrugada
E eis tudo quanto deixo a quem me herde
Não Jorge não deixes fechar-me os olhos
Não deixes roubar-me a luz que em vida
Neles sempre tive
Estendido no caixão sereno e impoluto
Irei de olhos abertos
Porque eu quero e sei que hei-de morrer
Como quem vive

1956

8

De alimentar-me de Ti como Jonas do ventre da baleia
De inserir-me em teus braços chicoteados de infinitos horizontes
De beijar-Te o rosto como uma chaga de luz
De amar-Te de um amor qual nunca amado
Na humana carne em que temerário confio
Por uma humanidade possível que o impossível não desmente
Aceito inscrever-me a fogo no teu Rosto
E ser vomitado ao fim do terceiro dia
Na cruz de sol de todos os milénios futuros

(de Invenção da Manhã, 1963)


VIII

Junto às muralhas de Babilónia Elsa sorri.
Os olhos de Elsa são duas cigarras verdes
E as mão de Elsa um salmo entornado
De lábios queimando na vertigem do mar
Salgado. Mar Morto mare-moto rubro denso mar
No separar de águas vermelhas
De paixão. Mar de Elsa olhos-cigarras
Na salmódia digital entrelaçada
De voluptuosa placidez peso sensorial
De moléculas-corpo na febre de milénios
Devindo noosféricos e ao fim o ponto Ómega.
Junto às muralhas de Babilónia e nem lá
Os olhos de Elsa são duas crateras
De tráfico cigano em rosas opiado.
Junto às muralhas de Babilónia e nem lá
Minha Nossa Senhora do céu e da Terra
Minha Nossa senhora dos olhos de Elsa
Rogai por mim e por nós nos olhos dela
Rogai por mim e por nós nas duas cigarras verdes!
Junto às muralhas de Babilónia Elsa sorri.
Minha nossa Senhora, Rainha, acordai no bronze
Do silêncio intérmino espacial
A voz da vossa eternidade presente.
Porque vos vi e amei nos olhos dela
(Com Ezra Pound declaro: «o paraíso não é artificial»!)
A minha alma, Senhora, mais fundo vos sente.

Poetas do mundo, acordai nos olhos d'Elsa,
Que o mundo, na carne d'Elsa, não mente!

(de O Ciclo de Elsa, 1971)


[poemas retirados de Dizer, Amar, Portugália editora, 1971 - colecção Poetas de Hoje]

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