30.11.05

FERNANDO PESSOA

- Comecemos por distinguir trez coisas que habitualmente se confundem quando se fazem referencias ao «Orpheu». Por «Orpheu» entende-se umas vezes a revistas com aquelle nome, de que sahiram só dois numeros, em Março e Junho de 1915; outras vezes os que estiveram ligados a ella, ainda que como simples espectadores proximos ou amigos, e sem que nella influissem ou collaborassem; outras vezes ainda, os que escreveram subsequentemente em estylo similhante ou approximado ao dos que de facto collaboraram no Orpheu.
- Ora eu parto do principio de que o que v. quere saber é como se organizou e lançou a revista «Orpheu», e de como foi recebida. É a isso, pois, que vou responder. Isto explicará desde logo, evitando confusões ou melindres que sem esta explicação se poderiam sentir justificados, porque motivo não cito varios poetas e escriptores que, pela mesma altura ou mais tarde, escreveram em estylo ou modo parecido com o nosso. Explicará tambem porque não vou buscar antecedentes, episodios anteriores à preparação do Orpheu, ou até as origens, reaes ou presumiveis, da corrente litteraria, pois foi uma corrente e não uma eschola, que semanifestou no Orpheu mas já antes começára.
- Vamos, pois, ao caso do apparecimento da revista. Em principios de 1915 (se não me engano) regressou do Brasil Luiz de Montalvor, e uma vez, em Fevereiro (creio), encontrando-se no Montanha commigo e com o Sá-Carneiro, lembrou a idéa de se fazer uma revista litteraria trimestral - idéa que tinha tido no Brasil, tanto assim que trazia para collaboração alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e a idéa do proprio titulo da revista - «Orpheu». Acolhemos a idéa com enthusiasmo, e como o Sá-Carneiro tinha, além do enthusiasmo, a possibilidade material de realisar a revista, passou immediatamente a dar o caso por decidido, e desde logo se começou a pensar na collaboração. Contanto mais enthusiasmo acolhemos a idéa quanto é certo que ambos nós haviamos projectado varias revistas, mas sempre, por qualquer razão, os projectos haviam esquecido. O que esteve mais proximo de se realisar foi o de uma revista pequena, entitulada «Europa», que abriria por um manifesto, de que escrevi apenas uns quatro paragraphos, com collaboração occasional de Sá-Carneiro, e de que me lembro ser uma dasprincipaes affirmações a da nossa necessidade de «reagir em Leonino» contra o ambiente - phrase tendente, é claro, para a perfeita elucidação do publico.
- O certo, porém, é que se decidiu publicar o Orpheu. Sem perda de tempo se adoptaram o nome e a periodicidade, e se estabeleceu o numero de páginas - de 72 a 80 em cada numero. E ficou egualmente assente que figurariam como directores o Luiz de Montalvor e um dos poetas brasileiros seus amigos - Ronald de Cravalho. Digo «figurar como directores» sem intuito algum reservado. A direcção real da revista era, e foi sempre, conjuncta, por estudo e combinação entre nós trez e tambem o Alfredo Guisado e o Cortes Rodrigues, de quem fallarei a seguir. Ficou assente tambem, que o Luiz de Montalvor escrevesse o prefacio da revista, o que de facto fez, não collaborando porém no primeiro numero por não ter prompto ou não considerar prompto o poema com que de facto collaborou no segundo.
No mesmo dia ou no dia seguinte expuzemos, Sá-Carneiro e eu, a idéa da revista ao Alfredo Guisado e ao Cortes Rodrigues, e pode dizer-se que o numero ficou completo, sobretudo depois de termos obtido a collaboração do Almada Negreiros, que providencialmente tinha completado uma pequena série, interessantíssima, de trechos em prosa, a que pôs o título «Frisos» quando os inseriu na revista.
O Orpheu foi logo para a typographia, ficando eu apenas a completar o «Opiario» do meu personagem Alvaro de Campos, que embora hypotheticamente escripto antes da «Ode Triumphal» o foi realmente depois.
O numero foi de facto bem organizado. Começava, àparte o prefacio, com uns poemas do Sá-Carneiro e fechava com a «Ode Triumphal» do meu velho e inexistente amigo Alvaro de Campos. E, a proposito de Ode Triumphal. Para dar, mesmo para os proximos de nós, uma idéa de individualidade do Alvaro de Campos, lembrei ao Alfredo Guisado que fingisse ter recebido essa collaboração da Galliza; e assim se obteve papel em branco do Casino de Vigo, para onde passei a limpo as duas composições. Lembro-me ainda do Antonio Ferro e Augusto Cunha, então muito novos, e que frequentemente iam pelos IrmãosUnidos, lerem attentamente, sòsinhos numa mesa ao fundo, essas composições inesperadas; assim como me lembro do Almada Negreiros, depois de ler com enthusiasmo a Ode Trimphal, me saccudir fortemente pelo braço, visto a minha falta de enthusiasmo, e de me dizer, quasi indignado: «Isto não será como v. escreve, mas o que é é a vida». Senti que só a sua amisade me poupava à affirmação implicita de que Alvaro de Campos valia muito mais do que eu.
- Assim a blague começava em casa?
- A blague? De certo modo. Mas é bom entendermo-nos sobre isso de blague, pois fomos accusados de «fazer blague» em tudo quanto escreviamos e faziamos.
Quando vi que o Orpheu era dado como propriedade de «Orpheu Ltda.» observei ao Sá-Carneiro que era preferivel dizer «Empreza do Orpheu» ou coisa parecida, e não empregar uma designação de sociedade por quotas. «E se alguem se lembrar de pedir a certidão de registo no Tribunal do Commercio?» «Você crê?» disse o Sá-Carneiro. «Deixe ir assim. Gosto tanto, tanto da palavra limitada». «Está bem» respondi, «se o caso é esse, vá. Mas, olhe lá, que serviço é este de o Antonio Ferro figurar como editor. Elle não pode ser editor porque é menor». «Ah, não sabia, mas assim tem muito mais piada!» E o Sá-Carneiro ficou contentissimo com a nova illegalidade. «E o Ferro não se importa com isso?» perguntei. «O Ferro? Então v. julga que eu consultei o Ferro». Nessa altura desatei a rir. Mas de facto, informou-se o Ferro e elle não se importou com a sua editoria involuntaria nem com a illegalidade d'ella.
Por exemplo? Reviamos nós, Sá-Carneiro e eu, as provas da primeira folha, quando me surgiu, no prefacio de Luiz de Montalvor, a phrase «maneiras ou fórmas» transtornada em «maneiras de formas». Ia a emendar, quando o Sá-Carneiro me suspendeu. «Deixe ir assim, deixe ir assim: assim ainda se entende menos.»
Um sonetilho de Ronald de Carvalho vinha, por distracção ou outro qualquer motivo, mal pontuado. Tinha só um ponto no fim das quadras e outro no fim dos tercetos. Esta deficiencia lembrou-me a extravagancia de Mallarmé, alguns de cujos poemas não teem pontuação alguma, nem no fim um ponto final. E propuz ao Sá-Carneiro, com grande alegria d'elle, que fizessemos, por esquecimento voluntario, a mesma coisa ao soneto de Ronald de Carvalho. Assim sahiu. Quando mais tarde um critico apontou indignadamente que «a unica coisa original» nesse soneto era não ter pontuação, senti deveras um rebate longinquo num arremedo de consciencia. Depressa me tranquillisei a mim mesmo. A falta de fim justifica os meios.

(texto, originalmente dactilografado, publicado como inédito em Nova Renascença Número 2 - Inverno de 1981 - sem indicação do destinatário, nem da data - grafia como no original)

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