12.11.08

MANUEL ALEGRE

Eu fui, há já muito tempo, o que actualmente se chama “um atleta de alta competição”.
Cheguei a internacional, fui campeão nacional de natação, conheci, em todo o esplendor e intensidade da juventude, a glória efémera de subir ao pódio.
Talvez por isso eu nunca tenha confundido literatura com qualquer espécie de campeonato. Não é uma corrida de velocidade nem de fundo. Ninguém sabe em que lugar chega ou em que lugar fica. Só o tempo o dirá. E isso não é sequer o mais importante. O que conta é aquilo a que eu chamaria estado de escrita. E que é uma espécie de estado de graça, tão intenso e efémero como o de subir ao pódio. O que conta realmente, é esse estado de vivencia mágica, de mediação ou vidência, como queria Rimbaud. Essa revelação do mundo através da palavra poética. Eu acredito que cada palavra contém o universo. E que um verso errado pode eventualmente alterar o equilíbrio cósmico. Acredito na poesia, que está antes e depois da literatura. E que é sobretudo a busca incessante dos ritmos primordiais. Ou como diz Octavio Paz: “litania, oração, exorcismo, liturgia, celebração”.

(inicio do discurso de aceitação do Grande Premio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, 1998 – in O Escritor – revista da Associação Portuguesa de Escritores Nº 13/14, Dezembro de 1999)

11.11.08

[estou onde está o homem - a propósito deste post do Miguel]


LÊDO IVO

A CORUJA


Minha noite é o dia
que enxota os sóis intrusos.
Qualquer vento enferruja
os portões e os navios
e muda em garatuja
as inscrições latinas
acima das cornijas.
Minha noite é a luz
sem subterfúgios
que atravessa o fundo
das agulhas mais finas
ou a fagulha dormida
em seu leito de hulha.
Só junto aos semáforos
desta capitania
sou a sentinela
das coisas encobertas
velhas botijas de ouro
gárgulas de cimalha
tocaia ou valhacouto.
E na alvura da noite
branca de mandioca
e esplêndida de coitos
estou onde está o homem:
na malha que o cinge
no abraço que o enlaça
na traça que o rói
no passo do sonâmbulo
na prega da mortalha.

(de Calabar, editora Record, 1985)