6.10.11

TOMAS TRANSTRÖMER


UM HOMEM DO BENIM

(sobre uma foto de um baixo-relevo em bronze do século XVI do reino negro do Benim, mostrando um Judeu Português)

Quando a escuridão caiu eu estava tranquilo
mas a minha sombra esmagada
contra a pele do tambor do desespero.
Quando as batidas começaram a morrer ao longe
eu vi a imagem de uma imagem
de um homem chegando apressado
à página da futilidade
que permanecia aberta.
Como se caminhasse diante de uma casa
abandonada há muito tempo
e alguém aparecesse à janela.
Um estranho. Ele era o navegador.
Ele parecia atento.
Aproximou-se sem caminhar.
Com um chapéu que se moldou
para imitar o nosso hemisfério
com uma aba no equador.
O cabelo dividido em duas partes.
A barba pendendo ondulada
como a retórica na sua boca.
Agarrou o braço direito dobrado.
Era magro como uma criança.
O falcão, que outrora permanecera
no seu braço, cresceu
nas feições do seu rosto.
Ele era o embaixador.
Interrompido a meio de um discurso
que continuou no silêncio
com um vigor ainda maior.
Três tribos estavam silenciosas nele.
Ele era a imagem de três pessoas.
Um judeu de Portugal,
que navegou com os outros,
à deriva e a fazer tempo,
o revirado bando
na caravela que foi
a mãe dos seus baloiços de madeira.
Desembarcou numa estranha fragrância
que tornou o ar velado.
Observado no mercado
pelo conjurador negro.
Por muito tempo na quarentena dos seus olhos.
Renascido na corrida ao metal:
«Vim para conhecer
aquele que eleva a sua lâmpada
para se ver em mim.»

(tradução minha, a partir da tradução de Robert Bly, in Micromegas – Vol IV, No. 1 [s. d.])
[mais poemas em português do Nobel de 2011, na Poesia & Limitada, na revista brasileira online Agulha e no blog do Nuno Dempster; reacções ao prémio, no DN, de Nuno Júdice, Jorge Sousa Braga e Pedro Mexia]

TOMAS TRANSTRÖMER


As pedras

As pedras que lançámos, ouço-as
cair claras como o vidro pelos anos fora. No vale
voam agitados os gestos do momento
gritando de copa para copa, calando-se
ao fino ar desse momento, deslizando
como andorinhas de cume
para cume até alcançarem
os planaltos extremos
ao longo da fronteira da existência. Aí caem
claros como o vidro
os nossos actos
ao encontro apenas do chão
que nós próprios somos.

(Tradução de Teresa Salema)


Aquele que acordou com o canto sobre os telhados

Manhã, chuva de Maio. A cidade esta calma
como uma cabana. Ruas tranquilas. No céu
troa azul-verde um motor de avião — a janela está aberta,
O sonho onde se dorme de membros estendidos
torna-se transparente. Move-se, tateia
pelos instrumentos da visão — quase no espaço.

(Tradução de Teresa Salema)


Kyrie

A minha vida às vezes abria os olhos no escuro. 
Uma sensação de multidões arrastando-se por ruas, 
cegas e sem descanço, no caminho para um milagre, 
enquanto eu fico aqui, invisível.

Como uma criança que adormece aterrorizada 
à escuta dos passos pesados do coração, 

até que a manhã ponha o seu raio de luz nos fechos 
e as portas da escuridão se abram.

(Tradução de Vasco Graça Moura)


Allegro

Toco Haydn depois de um dia sombrio 
e sinto um calor simples nas mãos

Há um querer nas teclas. Brandos martelos batem. 
O som é verde, tranquilo e animado.

O som afirma que a liberdade existe
e que alguém não paga a César os impostos

Enfio as mãos nas minhas algibeiras de Haydn
imito alguém a olhar o mundo calmamente.

Iço a bandeira de Haydn — quer dizer:
Nós cá não nos rendemos. Mas queremos paz.

A música é uma casa de vidro no declive 
por onde pedras voam, pedras rolam.

E as pedras atravessam as vidraças 
mas cada vidro vai ficando intacto.

(Tradução de Vasco Graça Moura)


Lisboa

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas calçadas íngremes.
Havia lá duas cadeias. Uma era para ladrões. 
Acenavam através das grades. 
Gritavam que lhes tirassem o retrato.

«Mas aqui», disse o condutor e riu à sucapa como se cortado ao meio,
«aqui estão políticos». Vi a fachada, a fachada, a fachada 
e lá no cimo um homem à janela, 
tinha um óculo e olhava para o mar.

Roupa branca no azul. Os muros quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde perguntei a uma senhora de Lisboa:
«será verdade ou só um sonho meu?»

(Tradução de Vasco Graça Moura)


O casal

Apagam a luz e o vidro branco da lâmpada cintila
um momento até se dissolver
como uma aspirina num copo de breu. Então elevam-se.
As paredes do hotel deslizam para o céu escuro.
Os gestos de amor esbateram-se e eles dormem
mas os seus pensamentos mais secretos encontram-se
como duas cores que se encontram e penetram
no papel molhado de um desenho infantil.
Está calmo e escuro. Mas esta noite a cidade
aproximou-se. Com janelas apagadas. As casas vieram.
Uma multidão de rosto inexpressivo
mantém suspensa a sua vigilância.


(Tradução de Teresa Salema) 


Quando a neve derreteu 66

Queda precipício de água ruído velha hipnose.
O rio inunda o cemitério de automóveis, brilha
atrás das máscaras.
Seguro-me ao parapeito da ponte.
A ponte: um grande pássaro de ferro que veleja pela morte

(Tradução de Teresa Salema)


Citoyens

Na noite depois do acidente sonhei com um homem bexigoso
que caminhava nas vielas cantando.
Danton!
Não o outro — Robespierre não faz passeios desses,
Robespierre faz a sua meticulosa toilette urna hora
cada manhã. O resto do dia devota-o ao Povo.
No paraíso dos panfletos, entre as máquinas da virtude.
Danton —
ou aquele que trazia a sua máscara —
parecia alçado em andas.
Vi a sua face desde baixo.
Lua bexigosa, metade luz, metade luto.
Eu queria dizer qualquer coisa.
Um peso no peito, peso
que faz avançar os relógios,
rodar os ponteiros: ano 1, ano 2...
Um cheiro intenso como serradura na jaula dos tigres.
E — como sempre no sonho — nenhum sol.
Mas os muros brilhavam
nas vielas que viravam
descendo para a sala de espera, a sala curva,
a sala de espera onde todos nós...

(Tradução de Almeida Faria)


Montes negros

Na curva seguinte saltou da sombra fria da montanha
o focinho virou contra o sol e rugindo rastejou para cima.
Íamos apertados no autocarro. Também lá estava o busto do ditador
envolto em papel de jornal. De boca para boca ia uma garrafa.
O sinal de morte crescia em todos a diferentes velocidades.
No cimo das montanhas o mar azul agarrou-se ao céu.

 (Tradução de Almeida Faria)


(in 21 Poetas Suecos, antologia coordenada por Ana Hatherly e Vasco Graça Moura, Vega, [1987])



5.10.11

PAUL CELAN


Resposta a um inquérito da Librairie Flinker, Paris (1958)

A poesia alemã segue, julgo eu, caminhos diferentes dos da francesa. Trazendo na memória o que há de mais sombrio, tendo à sua volta o que há de mais problemático, por mais que actualize a tradição em que se insere, ela já não consegue falar a linguagem que alguns ouvidos benevolentes parecem ainda esperar dela. A sua linguagem tornou-se mais sóbria, mais factual, desconfia do "belo", tenta ser verdadeira. É portanto —  se me é permitido procurar a minha expressão no campo do visual, não perdendo de vista a policromia de uma pretensa actualidade — uma linguagem "mais cinzenta", uma linguagem que, entre outras coisas, também quer ver a sua "musicalidade" situada num lugar onde ela já não tenha nada em comum com aquela "harmonia" que, mais ou menos despreocupadamente, se ouviu com o que há de mais terrível, ou ecoou a seu lado.

Apesar de não prescindir de uma plurivalência da expressão, o objectivo dessa linguagem é o do rigor. Não transfigura, não "poetiza": nomeia e postula, procura delimitar o campo do que é dado e do que é possível. É claro que o motor nunca é aqui a própria linguagem, mas sempre e somente um eu que fala a partir do ângulo particular da sua existência, para o qual é importante definir um perfil e uma orientação. A realidade não é, a realidade vai ser procurada e conquistada.
Mas não estou eu já a fugir à vossa pergunta? Estes poetas! Chega-se ao ponto de esperar deles que um dia ponham no papel um romance a sério!


(in Arte Poética - O Meridiano e outros textos, tradução de João Barrento e Vanessa Milheiro, edições Cotovia, 1996 / publicado originalmente no Almanach 1958, da Librairie Française et Étrangère Flinker, Paris, 1958 e depois reproduzido no jornal Die Welt (Hamburgo), de 22 de Novembro de 1970)


4.10.11

ANTÓNIO ARAGÃO 


SONETO

Olha o espelho: a minha boca arde.
Trago o corpo à beira de todos os perigos.
Já não ouço os passos, já não tenho amigos.
Meu coração parou mesmo ao cair da tarde.

Faço com as mãos o tamanho do medo.
Pago bilhete. Dão-me um lugar sentado.
Mas quero ir para qualquer lado
embora me digam que ainda seja cedo.

A alma suja deixo-a como está.
Limpo-me apenas por baixo dos sovacos
e não visto afinal nenhum dos casacos

exactamente porque talvez não vá
para nenhuma parte e sem nenhum sentido,
como um cão já farto de andar perdido.


(Do livro 30 Sonetos, in O escritor N.º 4, Associação Portuguesa de Escritores, Dezembro de 1994)

2.10.11

CESÁRIO VERDE


[Carta a Bettencourt Rodrigues]

Linda-a-Pastora, 16 de Novembro de 1879

Meu amigo - Tem chovido bastante e há dias que temos as comunicações cortadas com Lisboa, como numa ilha por um mar bravo. De modo que talvez tu me escrevesses alguma carta, que esteja lá em cima e a que não respondo agora por conseguinte.
Por aqui e por todo o país, naturalmente, continua tudo na mesma, isto é, tudo está parado. Dizer mal disto parece uma coisa pedante do Visconde Reinaldo, mas não é
[...]
Eu não faço nada, falto de estímulos, aborrecido contra esta gente da cidade a que tenho raiva como a um marreco. Ao menos, pelo campo ainda há coisas primitivas, sinceras, de uma boa paz regular; e embora a existência não apresente alterações nenhumas, o caminhar da estação, a mudança quase insensível no aspecto da natureza todo o ano, é admirável, sugestivo. Chega o Inverno; e hoje, que é Domingo, sabes em que me entretenho? Em partir pinhões com uma pedra à porta de casa. Compram-se aos salamins no padeiro do lugar, um brutamontes de mangas arregaçadas e braços peludos, e cheios de pasta de farinha, que nos diz: - Viva! - com mau modo. No enfastiamento domingueiro, o que se pode fazer senão isto? No Verão, comíamos tremoços que nos despertavam uma grande sede, apetitosos, escorregadiços; depois foi-se o Outono nos arraiais pelos lugarejos próximos. Agora os rapazes deitam o pião nos largozitos, e quando chove muito, e a cheia alaga as baixas e os caminhos, apupam-se monte para monte com buzinas de chavelho. Lembra a Idade Média, Rolando, Roncesvalles, não sei o quê.
[...]


(in Obra Poética e Epistolografia, edição organizada por Ângela Marques, Lello editores, 1999)