12.3.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

GOMES LEAL


Alucina-me a Cor! - A Rosa é como a Lira,
A Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
E é já velha a união, a núpcia sagrada,
Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira
A teatral camélia, a branca enfastiada,
Muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
Como a perdida cor de alguma flor que expira...

Há plantas ideais de um cântico divino,
Irmãs do oboé, gémeas do violino,
Há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada.
E o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
- Tem notas marciais, soa como um clarim.


CAMILO PESSANHA

Floriam por engano as rosas bravas
No inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

Sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze - quanta flor! - do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?


ÂNGELO DE LIMA

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado.
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.
Pára à beira do abismo, se demora.
E mergulha na noite escura e fria.

Um olhar de aço, que essa noite explora.
Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...


FERNANDO PESSOA

GOMES LEAL


Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.
Seus três anéis irreversíveis são
A desgraça, a tristeza, a solidão.
Oito luas fatais fitam no espaço.

Este, poeta, Apolo em seu regaço
A Saturno entregou. A plúmbea mão
Lhe ergueu ao alto o aflito coração,
E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

Inúteis oito luas de loucura
Quando a cintura tríplice denota
Solidão e desgraça e amargura!

Mas da noite sem fim um rastro brota,
Vestígios de maligna formosura:
É a lua além de Deus, álgida e ignota.


EDMUNDO DE BETTENCOURT

ABRIGO


Presa da chuva corre a prostituta,
corre presa,
e em frente é a porta aberta do palácio que lhe acena.

Mas à entrada,
o resto duma sereia emerge do escuro,
e um lobo acorda do sono dum tapete,
com uma risonha flor nos dentes,

que a uma claridade subterrânea
o palácio está sem tecto,
suas paredes transparecem,
todo ele é uma poça de água cintilando!

Fora,
uma lira de chuva num deserto
acena à prostituta...


VITORINO NEMÉSIO

O recorte de um cão, na areia, ao luar.
Seu passo imprime
O cuidado miúdo e honesto de passar.

Mas que tristeza oprime
Tanto cão que vi uivar a tanta eira?
Que longo e liso, o fio da noite!
- E amar, esperar desta maneira!

Numa cidade deserta
(Talvez outra, ou Ninive)
Encontrei um anel, uma oferta,
Da vértebra de um cão,
Para uma mulher que já não vive.

Mas tudo isso foi vão,
E até nem sei se esse osso tive.


CARLOS DE OLIVEIRA

SONETO FIEL


Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.


MANUEL DE CASTRO

A VOZ QUASE SILÊNCIO


vai-se perdendo a voz quase silêncio
um corpo agora oco gasto frio
a morte é uma cor que foi escolhida
para encontrar a direcção do vento

o homem que foi um feto que foi um peixe
que foi o ar que foi o sangue e o gesto
atravessa o mar com círculos nos braços
possuído no seu próprio destino
na descoberta dos focos submarinos

ao nível das estrelas mais brilhantes
e no entanto desde há muito extintas
pode encontrar-se o grande amor final
pesar-se no seu som e qualidade

garganta de alcatrão fundente
vai-se perdendo a voz, quase silêncio


ANTÓNIO GANCHO

ULISSES-OLISIPO


Desenham-se no céu os números da solidão
por onde James Joyce conseguiu escrever o romance
Ulisses há-de sê-lo bem o meu coração
eu, a minha solidão, o meu transe

A chaminé na cidade deita o fumo da minha angústia
o meu desespero projecta a minha intoxicação
Ulisses, cidade de Dublin, eu, Lisboa, minha cidade
eu, Lisboa, a chaminé, o meu coração

O fumo sobe que sobe sobe que sobe e enche o ar
cidade de Dublin, Lisboa
também eu te vou a cantar

Grande a nostalgia do teu néon luminoso
a sentir-se dentro de mim e a dizer-se que já não posso

Aqui a enorme cidade aqui a tentacular
o meu crime é de estudar o céu que me invade
e onde arranha o arranha-céus.

[todos estes poemas estão incluídos em Edoi Lelia Doura, antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, organizada por Herberto Helder, Assírio & Alvim, 1985]

11.3.04

[enviado por um amigo]

Esta manhã explodia o terror em Madrid...

Ontem, as laudes da liturgia das horas propunham-nos este salmo...


Salmo 76(77)
Lembrando as maravilhas do Senhor
Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos (2Cor 4,8).

[...]
Será que Deus se esqueceu de ter piedade?
Será que a ira lhe fechou o coração?
Eu confesso que é esta a minha dor:
"A mão de Deus não é a mesma: está mudada!"

Mas, recordando os grandes feitos do passado,
vossos prodígios eu relembro, ó Senhor;
eu medito sobre as vossas maravilhas
e sobre as obras grandiosas que fizestes.

São santos, ó Senhor, vossos caminhos!
[...]

Voltemos a rezá-lo!...

7.3.04

O Tiago foi a primeira pessoa que conheci por causa dos blogues. Gosto muito do que ele diz e de como o diz.
Aquilo que muitos pensam ser mero exercício de ironia é, na verdade, a prática de uma honestidade e sinceridade que vão muito para lá da simples resistência ao politicamente correcto.
Quando fala da sua suburbanidade ou quando se compara a Saddam Hussein dizendo que podia ser tão mau quanto ele, o Tiago apenas está humildemente a demonstrar a sua lucidez evangélica.
O Tiago é um verdadeiro profeta, como é necessário que sejam todos os cristãos.
A Voz do Deserto completou esta semana um ano de emissões.
[as Torneiras recanalizaram-se para o local de origem. Convocam-se os GNR, para marcar o evento (ainda que com atraso...)]

FREUD & ANA

Mão morta/Mãe morta
Vai bater àquela porta
"Que se lixe quem não dança"
(disse Carl Jung)
É o século XX/
É o sexo vintage
A nossa doença, a nossa militância
É há cá quem sofra de complexos
E quem se queixe de SIDA
Mesmo de novas misturas
Em casais de pombos
E há cada vez mais novos combos
E até electro-choques
Insulina a rodos e outros mentais retoques

Querida,
Apareces-me em sonhos
Com penas de gato e muita comida
Que não te falte nada
Mesmo assim vestida
A tua líbido é mistura
De desejo e bebida

Como a cabeça do bispo
Tu comes a cabeça da dama
Vendo-te o "cavalo"
Empresto-te a torre
Mas quero saber que me ataca
Atropelo um peão
Juro que ele não morre
Baby eu sei que não sente
Liebschen ele nem trabalha
Não come não sente
Já não se lembra quem é...

E o luar é tão cândido
E eu e tu Ana tudo é pureza e limpeza
E era tudo tão claro
E agora é tudo tão vago
Tudo gente tão podre
E há uma assimetria
Com um toque de lobotomia

Ó miss Psicanálise - Que perfeita que és
E tão pequenina
Com umbigo e tudo - E até unhas nos pés
Que saúde que tens!
(Como eu a invejo)...
Que perfeita que és da cabeça aos pés!

(do álbum Os Homens não se Querem Bonitos, de 1985 - Letra e Música: Rui Reininho, Alexandre Soares, Jorge Romão e Toli)
REVISTA DE BLOGS IMAGINÁRIOS:

· O Na paz dos reis propõe a continuação da Panóplia do fetichista cinéfilo, mas só com filmes lusófonos:
101 - Fato aos losangos ("A dança dos paroxismos", Jorge Brum do Canto)
102 - Boneco de ventríloquo ("O grande Elias", Arthur Duarte)
103 - Sapatos brancos ("Ópera do malandro", Ruy Guerra)
104 - Lupa ("A Comédia de Deus", João César Monteiro)
105 - Luvas sujas de sardinhas ("Tráfico", João Botelho)

· No Velho cinema de réprise, a Rita revê a sua história.

· No Geórgicas & Bucólicas, o Virgílio conta que foi ao McDonalds do Chiado comer um GreekMac e foi atendido por uma rapariga chamada Eneida.

· O Figuras com estilo apresenta exemplos de pleonasmos onde se repete a mesma ideia:
- endereço de e-mail electrónico;
- líquido fluído;
- os clássicos: subir para cima, descer para baixo, entrar para dentro e sair para fora;
- falantes de língua lusófona;
- subscrevo por baixo.

· No Nada a aclarar considera-se despropositada e inoportuna (além de atrasada 3 dias) a evocação d'oblogsobrekleist pelo Ruialme.