30.7.14

MIGUEL MARTINS


Projecto de vida: Construir uma jangada. Descer um rio calmoso interminável. Alimentar-me das margens: figos de piteira, bagas, codornizes assadas no espeto ou sobre pedras quentes. Ser sempre Primavera - possuir apenas uns calções ligeiros, uma faca. Ser senhor de mim ou nem sequer. Ter o rio por espelho e desabituar-me disso. Esquecer os conluios do carvão e do aço. Assobiar melodias sem história. Foder com a água; depois, orar às estrelas. Saber que é na finitude da vida que reside a sua eternidade. Saber distinguir os sabores de oitenta águas. Saber embebedar-me com ares cegos e brisas e conversar com uma índia ou um cão incorpóreos. Morrer só, devagar, e decompor-me completamente entre chuvas e ramos de salgueiro.


(de Cotão, &etc, 2014)

29.7.14

LUÍS PEDROSO


NO PASA NADA

Não se passa nada,
como se cinco minutos depois do pequeno-almoço
tivesse entrado humidade para dentro da clepsidra
e eu saísse apavorado de uma biblioteca,
alegando silêncio em excesso

Desperdiço as minhas tardes na hemeroteca,
no arquivo fotográfico, à procura das minhas ruas,
dos becos e baldios abandonados,
pedregulhos sobre os auxiliares de memória,
e a partir de agora estar vivo é um estrangeirismo

Não se passa nada,
e o poema é um fragmento, um avolumar de palavras.
Penso na dignidade de não ter nada
e saio à rua limpo, radiante de ignorância


(de Romance ou Falência, artefacto, 2014)

28.7.14



RUI CAEIRO



Percorra a gente os caminhos que percorrer, Travessa dos Remolares incluída, sempre em nosso desnorte alguma coisa procuramos - ainda quando aparentemente estamos a fugir de qualquer coisa, às vezes nem sabendo bem de quê, ou ainda quando fugimos daquilo que procuramos ou procuramos aquilo de que fugimos.
Após tão arrevesado parágrafo, regressemos ao que ora importa, isto é, que remédio, à Travessa dos Remolares ela mesma.
Quem por lá passa, e não sei porquê (ou não sei eu outra coisa) nunca são muitos os que por lá passam, procura o quê?, foge de quê?, encontra o quê?
Há para mim mais metafísica, isto é, mais fonte de perplexidade, nestas três perguntinhas - ainda que a resposta devida a cada uma delas não passe de de um atónito «nada!» - do que nos terríveis labirintos dos livros sagrados: toras, bíblias, corões...
Percorrer a Travessa dos Remolares inculca, quer pela pequenez da artéria, quer pelo que nela há de insuportável, sair de lá quanto antes. Que aquilo não é sítio para um peão se demorar. Sair, tão depressa quanto possível, para depois trazer a rua agarrada à sola dos sapatos, à laia de algo que se pisou sem querer.


(excerto de Travessa dos Remolares, Paralelo W, 2013)