20.11.13

ANTUNES DA SILVA


A PAISAGEM SÓ

Nem sempre o silêncio é grande
Nas altas faias do rio.
Há lágrimas nos valados
E solidões nos montados,
Nos vastos campos lavrados
O enigma de um desafio.
Do longo beijo nas trevas
Que a noite vai semear,
Nasce uma flor mimosa
Que não é cravo nem rosa
Nem papoila esplendorosa
Como as estrelas do mar.
São os caminhos floridos
Das mais suaves cantigas
Que alguém soube decorar,
Cantando a vida a chorar,
De peitos nus, a sangrar
As nossas dores antigas.
Belas imagens de infernos,
De céus doridos e quentes.
Sementes de terras rudes
Onde medram os açudes
E se cantam as virtudes
Da maioria das gentes.
E é doloroso o cantar,
Tanto como esta amargura
De quem ama com secura
A própria vida futura
Que um dia há-de despontar.
Chorosos sonhos de morte
Que a Planície teve um dia.
Há o arvoredo que grita,
Na sua linguagem aflita,
A sua sede maldita
De sol e de ventania.
Nem sempre o silêncio é grande
Nas altas faias do rio.
Há lágrimas nos valados
E solidões nos montados,
Nos vastos campos lavrados
O enigma de um desafio.



(de Esta Terra que é Nossa, Centro Bibliográfico, 1952 - Cancioneiro Geral)

18.11.13

JOÃO LOPES


POESIA

Pedes mais certeza à poesia
e tens razão em pedir o que todos aprenderam a pedir
porque se não avançamos com precisão
então, como tu disseste, não sabemos para onde vamos
e sem saber para onde vamos
não podemos lá chegar
ignorando que lugar é esse
para onde começámos a caminhar.

Esperas mais transparência da poesia
e tens razão em ansiar por sair do pânico das noites
porque se não celebramos o dia
então, como alguém sugeriu, não merecemos a atenção divina
e sem a protecção da linguagem divina
o destino transforma-se numa feira
mesmo se é verdade que te confunde
que esta estrofe retome o ritmo da primeira.

Anseias por uma poesia sem máscaras
e tens razão em protestar contra todas as mentiras
porque se não nos apresentamos assim mesmo
então, como bem sabemos, desvalorizamos o próprio poeta
e já nos basta que um poeta
chamado Robert Allen Zimmerman
assine Bob Dylan e não desista de o fazer
what the fuck does that mean, man.

Exiges mais rigor à poesia
e tens razão em celebrar a luz das ciências
porque se não nos entregamos à escola
então, como todos sabem, seremos párias sem rosto
e quando se desagrega o rosto
está ameaçada a casa e a identidade
e tudo o que nelas nos garante
o direito de circular pela cidade.

Gostas que a poesia não te desiluda
e tens razão em combater a tristeza nascente
porque se o planeta anda deprimido
então, como eles pediram, organizaremos festas
e ocupados e felizes com as festas
usaremos um anel de diamante
rindo dos touros esquartejados
rastejando numa poça de sangue brilhante.

Desculpa não te seguir
na celebração do mundo certo
os meus deuses são veados
de um poema de sexo incerto.

Aquele cadáver és tu
é isso que a poesia proclama
podes até chamá-lo pelo meu nome
mas não podes obrigá-lo a rimar.



(de Poemas de Guerra, Gótica, 2002)

17.11.13

HAN SHAN


37

Os ricos cheios de trabalho, preocupações,
lutam por tudo, contentam-se com nada.
Mesmo com arroz bolorento nos celeiros,
incapazes de emprestar uma malga a um pobre.
Só pensam nos bens, no lucro,
transformam pano reles em seda de primeira.
Um dia todos irão dar um último suspiro,
só as moscas lhes apresentarão condolências.


(tradução de António Graça de Abreu, in "DiVersos - Poesia e Tradução" - N.º 15, Junho de 2009)