6.11.03

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Depois da cinza morta destes dias,
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos,
Se dissolver, cumprindo o seu tormento,
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.

(de Coral, 1950)

5.11.03

MARIANE MOORE

Nasceu no Missouri (EUA) em 1887.
Recebeu vários prémios pela sua Obra de cerca de uma dezena de títulos.
Morreu em 1947.

Valha o que valer, a minha convicção tem-se mantido inalterável ao longo dos últimos catorze anos; consiste ela em que os poemas de Miss Moore fazem parte do exíguo corpo de poesia durável escrita no nosso tempo; desse exíguo corpo de escritos em que, entre tudo aquilo que passa por poesia, uma sensibilidade original e uma inteligência alerta e uma funda compaixão se conjugaram para a preservação da vida na língua Inglesa. (T. S. Eliot, em 1935 - citado por Rui Knopfli)


UMA GARRAFA DE VIDRO SOPRADO EM FORMA DE PEIXE

Aqui nós temos sede
e paciência, desde o primeiro
e arte, como se numa onda imobilizada para podermos
descortinar na sua essencial perpendicularidade;

Não quebradiço mas
intenso - o espectro, esse
espectacular e ligeiro animal o peixe
cujas escamas afastam com seu brilho a espada do sol.


SILÊNCIO

Meu pai costumava dizer:
"As pessoas superiores nunca fazem visitas prolongadas,
têm de a campa de Longfellow
ou as flores de vidro de Harvard.
Auto-suficientes como o gato -
que, pendendo-lhe da boca a cauda do rato
como um atilho bamboleante,
leva a presa para a intimidade -
por vezes apreciam a solitude
e podem ser privadas do discurso
pelo discurso que as deliciara.
Os sentimentos mais profundos manifestam-se sempre
em silêncio;
em silêncio não, mas de novo comedido.
Tão pouco era incincero quando dizia:
"faça de minha casa a sua hospedaria".
Hospedarias não são residências.


NENHUM CISNE TÃO FINO

"Nenhuma água tão tranquila como as
fontes mortas de Versalhes". Nenhum cisne,
de esquivo escuro velado olhar
e pernas gondoleiras, tão delicado
como o de porcelana colorida com
seus olhos castanho-corça e coleira
de ouro denteado para que
saibamos a quem pertencera.

Instalado no candelabro-árvore
Luís Quinze, de cristas-de-galo em botão,
dálias, ouriços-do-mar e sempre-vivas,
pousa nas ramificações alveolares
das flores em brunida
escultura - sobranceiro e alto. O rei morreu.


QUE SÃO ANOS?

Que é a nossa inocência,
que é a nossa culpa? Todos estamos
nus, em segurança ninguém. E donde
vem a coragem: a pergunta em aberto,
a dúvida resoluta, -
mudamente clamando, surdamente ouvindo - que
na desgraça, mesmo na morte,
encoraja os outros
e na derrota, incita

a alma a resistir? Lobriga
longe e é confortado, aquele
que aceita a mortalidade
e na sua clausura se ergue
acima de si próprio como
o mar que lutando para libertar-se
da fenda, e incapaz de fazê-lo,
encontra na capitulação
a sua continuidade.

Assim, o que é animoso,
saberá comportar-se. A própria ave,
engrandecida pelo canto, acena
para o alto o seu perfil. Cativa embora,
o seu poderoso canto nos diz
que coisa banal é a satisfação,
quão pura é a alegria.
Aquilo é mortalidade.
Isto a eternidade.

(traduções de Rui Knopfli, in Caliban 3/4, Junho de 1972 - edição fac-similada: Instituto Camões - Centro Cultural Português de Maputo, 1996?)
MANUEL RESENDE

Nasceu no Porto, em 1948.
É também tradutor, e o Quartzo Feldspato & Mica tem publicado, em exclusivo, algumas das suas belíssimas traduções.
É um dos coordenadores da revista de poesia e tradução Di Versos.


PREFÁCIO

Uma lágrima cai de leite sobre cinzas
Levanta um revoar de pó tão triste e sujo
Uma como que cortina de silêncio de olhos.
Ou será o silêncio só que após se segue?

Passaram tantos anos e os anos idos
Fogem entre cabelos como essas figuras
Que desfilam em frente ao mar no nevoeiro
E doem como dor aguda sob os ossos.

As amoras maduras destilam gargantas
De ácido puro. Longe desfibram-se os surdos
Últimos brados de uma multidão febril.
Mas será o silêncio só que após se segue?
Não te queixes já corpo não. Espera um pouco
Com mais um ano em cima do lombo riremos
Muito ao de leve muito do passar dos anos
Em nome da alegria dos anos passados.
Ou será o silêncio só que após se segue?


SONETO AMERICANO

No amplo clarão d'algum café concerto
do violino ciciam os sons o arco
suspenso no ar num gesto inconcreto
Nuances de mar ou suspeitas de barco

Impulsão musas Hiato aedo eolo
Que desse fim do mundo e desse medo
Transportas os sons os solos
As jusantes memórias a que cedo

Concressão do antes do sido do cedo
Café aquecido raiz das pernas
Nádegas e abertos olhos (Cerne as
Víboras vistas em segredo)

Evoca Baco chama o sútil gado
De Neptuno de Vénus e Vulcano
Sonhos de antes de sonhar nada
Universo feito dum só pano

Mas talvez Índias houvesse e Índios
Ouvisses cantar apaches e manitus
Se os ouvires os olhos cinde-os
Concede-lhes a honra de os ver nus


LIBERTINO BELISÁRIO EM SEU JARDIM

O godo Belisário, convertido ao gozo bizantino,
Arruma Rosa, a dos dedos sujos, contra os clássicos:
Lava-lhe o morco, subtil, do púbis.
Aventa-lhe o lábio à penugem, já, do lábio
Loira, portuguesa, importada das Caldas.
Coa-lhe a música das frautas pastoris
Que o Montejunto derrama pelas faldas.

Que creme lhe serviu! Que Grécia!
Mas esta jovem que desmamou das fraldas
Belisário, o plagiador, na biblioteca
Entregou-lhe um amor, apenas, de livro aberto.

E a Silvestre, um porco, um corpo, um peco
Essa pêssega arisca, essa pega,
Foi dar o sumo de sua lavra
Coxas esguias, fenomenais, abertas.

(de Natureza Morta com Desodorizante, Gota de Água e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983)


PROCURA A CARNE

Procura a carne a carne, e a ferida
Vai-se fechando nesse lento encontro.
Encerra-se o passado ponto a ponto,
Onde havia a dor vem a cicatriz.

Por si, não é feliz nem infeliz,
Essa estrada que em si a carne traça,
Um saber que não sabe, só perpassa,
E que por onde passa deixa a vida.

Nessa ruga aí vamos avançando,
O corpo amado vai envelhecer,
Que Urubu tempo junta estranho bando.

Isso que não é chamam-lhe viver.
Assim se faz o onde, o como, o quando,
O corpo o campo santo do prazer.

(in Di Versos 1, Outono de 1996)


Por exemplo

Por exemplo: os cheiros não têm nome
- Nem as nossas penas e alegrias.
Como separar o cheiro da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos,
Da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos?

As palavras cobriram com o seu mar
A maior parte da terra
E lá dentro já só vivem peixes mudos
E plantas meio descoradas,

Mas
Ameaçadoras
Ou aduladoras
Embateram impotentes
Contra as falésias onde
Começa o reino dos cheiros e da emoção.

Como dizer
O cheiro da alfazema, da urze,
Dos beijos ou dos corpos,
Ou disso tudo junto?
Só estando lá.

(in Di Versos 6, Outono de 2001 - onde se anuncia para breve O Mundo Clamoroso, nas edições Angelus Novus)

4.11.03

XIN QIJI
(1140-1207)

«A ESCRAVA FEIA»

Na juventude eu não sabia
Qual era o sabor da melancolia.
Gostava de subir aos altos pavilhões,
E fazer lá versos muito melancólicos.
Porém agora, tendo-lhe conhecido
O gosto, já não quero
Falar mais dela, não,
Digo apenas: «Um dia fresco, que belo Outono.»

(in Uma Antologia de Poesia Chinesa por Gil de Carvalho, Assírio & Alvim, 1989 - tradução do antologiador)

3.11.03

MÁRIO CLÁUDIO

ESTANTE


1.
Encetamos o texto, três nódoas de gordura
no papel. Não somos gente de brincos, capas
de brocado, no balcão depondo um presente
de frutos e penas.

2.
Num sobressalto se inquiria o destino do livro,
o segredo por um dia nos afrontava.
No regaço o deixáramos de quem partira,
quando um vaso nos tapetes se entornara.

3.
O frasco de lavanda de lado a lado fracturara
o lavatório. Rasgara o cabedal do amuleto fula, com seu versículo inviolado do Corão. Dera depois por falta da minúscula caixa de Córdova. E a tradução de Sinisgalli, perdida entre que migalhas, «miraggi di fumo, castelli di carte»?

4.
Acumulamos os registos do saber, o futuro
lançado em sinuosos caracteres. A poeira
das mimosas sobre isso vai abatendo, longe
dos pintores de Siena. Que pode a morte
contra eles? E o carvão em que, dizem nos
convertemos?

(in tempo migratório - selecção de poesia portuguesa inédita, Limiar, 1985)

2.11.03

[singelo contributo à evocação que hoje o Almocreve das Petas faz de um dos maiores nomes de sempre da nossa literatura]

Manuel Poppe - É unanimemente considerado uma personalidade agressiva e provocante e temido como tal. Como comenta o facto?
Jorge de Sena - Toda a gente que me conhece sabe que eu não sou nem agressivo nem, como é que disse?... provocante - ou julgado tal - isso tem sido uma das mitologias com que se tem procurado durante décadas neutralizar aquilo que eu tenho procurado ser, como outros em Portugal - felizmente - têm procurado ser e igualmente foram longamente denegridos como eu, e que é procurar dizer a verdade, procurar esclarecer, e ser de uma total independência. Há uma coisa que em Portugal se não perdoa que é a total independência. A independência em Portugal paga-se extremamente cara. Nós temos, em Portugal, de pertencer a qualquer casa da comarca de qualquer coisa, seja um grande partido político ou seja um grupo onomástico. Se não pertencemos a qualquer destas coisas estamos perdidos...

(de uma entrevista realizada em 25 de Abril de 1977, em Catania, Itália, aquando da entrega do Prémio Literário Etna-Taormina a Sena, um dos dois únicos prémios literários que recebeu em vida - publicada no Diário de Notícias em 2 de Junho desse ano)
[outros melros IX]

ANÓNIMO
(este poema foi escrito por um monge na margem de um livro que estava a copiar, provavelmente no século VII)

The blackbird

Ah, blackbird, thou art satisfied
Where thy nest is in the bush:
Hermit that clinkest no bell,
Sweet, soft, peaceful is thy note.

(in Irish Verse - An Anthology, edited by Bob Blaisdell, Dover Thrift Editions, New York, 2002 - translated [from the Irish] by Kuno Meyer)


O melro

Oh negro melro, como estás satisfeito
No lugar do ninho teu no arbusto:
Ermita que não tocou a sineta,
Doce, suave, pacífica a tua nota.

(tradução minha)