29.3.08

Hoje, às 18 horas, na Fábrica de Braço de Prata, é apresentado o livro Pôr a Escrita em Noite, da autoria de Davi Reis, um dos membros da banda Baby Jane, autor do blogue Caderno de Corda e do "hino" da Associação Porta 65 fechada. Além disso, dá-me a honra de ser meu Amigo.

28.3.08

RUI COSTA

Rafaela é bela e nenhum livro consegue disfarçar a beleza. Podemos negá-la, torcê-la, podemos amputá-la, esquecê-la, podemos nunca falar nela. Mas ela surge do avesso, põe-se atrás de portas que no momento seguinte são abertas. Transmuta-se na nossa negação e quando julgamos que o assassínio é possível é ela que se ergue das cinzas fumegantes do cadáver. O poeta nega a lírica e falha completamente, escreve um poema que não lhe sustenta os passos e eis que ela aparece sentada e sorridente e então é o tempo que pára e nós a inventar a forma de lhe pedirmos desculpa. Claro que essa desculpa é traiçoeira, claro que queremos a destruição sem vestígios, claro que sofremos com isso e temos medo que o nosso medo a volte a profanar. Inventamos fugas ao ritmo, dissonâncias, criamos martírios impossíveis de escrever. Insultamos a ginga das mulheres, sua melodiosa elipse, inventamos metonímias como forma de as surpreendermos em tudo. Mas em tudo é em nossa própria pele que caímos.

(excerto de A Resistência dos Materiais, exodus, 2008)

26.3.08

ISABEL CRISTINA PIRES

O TEMPO


Há um relógio,
um sol redondo onde giram as horas com vagar
dentro do covo infinito de um náutilo de vidro,
por onde o tempo se esvai;
o tempo das catedrais, das horas mortas,
das ciganas que lêem a sina com sobranceria,
o tempo nocturno das aves que repentinamente matam,
e bicam e estorcem e vasculham, esse tempo,
escorrega também no labirinto,
no caracol nacarado que enrola e se enrola,
as voltas, as valsas que ficam no mesmo lugar,
a música que ressoa numa parte da cabeça e que nos doma
o coração, alguma coisa aquilo significa

pulsam as horas na espiral, no nevoeiro de ondas,
arquivoltas e abóbadas de um tempo
redondo e respeitador.
Agora o tempo pára, pára um pouco,
e um assassino mata e transforma-se noutro
e um ai de amor ficou suspenso
um pouco eterno na memória

algo fica sempre por fazer ou foi feito de mais
no passo de hélice que o relógio corre,
o giro, a esfera, o sol azteca
que é de todos o mais sol, todos o sabem,
o mais redondo e doirado, o que está
nos girassóis, nas lages de arenito,
nas ondas concêntricas dos lagos lamacentos
na alegria pulcra de um domingo de Páscoa

tantas e tantas flores enleiam esse tempo,
aquele sol, que está para além de tudo o que é visível;
e assim o tempo escorre
no seu labirinto penugento e mátrio, numa rotação
de língua que nos saboreia

(de A Roda do Olhar, editorial Caminho, 1994)

25.3.08

SOFIA CRESPO

1


oh noite faroleira

descansa no colo do meu olhar
esse teu pranto tão cansado

e atormentada voz que te assiste
desolação de mares arrebentados

inquietos sonos que construíste
nessa pedra que erosa até ao céu
à sombra dos que lá poisam

porque se de mim me fui
já tenho mar que me chegue

e sempre de noite rouca
inquieto o desejo dos passos

em vigílias de coisas que não vês
para além dos horizontes
corpolados entre céus e águas

e se te alcanço a densidade
sei voar ao silêncio

não vês tu que infinita ideia?

(da sequência outros poemas para descansar, in Anunciada Embarcação na Histeria, &etc, 1997)