21.1.16

VERGÍLIO FERREIRA


Caminhamos agora por uma recta extensa. Passam à nossa beira camponeses escuros, um ou outro pedinte de viagem com a face das misérias bíblicas. Ao fundo, barrando o horizonte, ergue-se a montanha, que recua, vagarosa, diante de nós, como para nos atrair à sua verdade de génese. E, suspenso sobre ela, unido ao cântico dos homens, que já não ouço, eis que se me abre um coral longínquo, eco de que paz triunfal numa manhã solene, esperança sem fim, esperança eterna? ‘Messias’. Haendel.
Behold the Lamb of God, that taketh away the sin of the world.
E é como se através da multidão dos séculos eu ouvisse o tropear de todos os povos da terra caminhando comigo, cantando o sonho da sua amargura milenária. Gente estropiada, escarros de humilhação, e a fome, e o remorso, e o cansaço, e a loucura que emerge como um incêndio na noite, e a lepra, e a angústia da interrogação, velhos da idade do sofrimento, gente que espera, gente que sonha… De que abismos esta mensagem? A montanha vibra na sua massa branca ao apelo da ansiedade. Vozes de longe, cantando, cantando. Marcha sem fim, ó coro da desgraça de sempre! Que força absurda vos ergue para a esperança do que não há?
Surely He hath borne our griefs, and carried our sorrows!
Como o sabeis? Como o sabeis? Ah, a vossa dor tem a medida da eternidade. Mas a a esperança renasce-vos sob as mesmas cinzas e a mesma ruína… Eis-vos cantando como doidos para a distância do céu nublado. Mas vós acreditais que uma estrela nascerá por detrás das nuvens…
O coro morre ao longe entre o silêncio das fragas. E quem avança para a montanha e para a mão que dela se ergue sou eu só. Esperança de nada, só a relembra agora a névoa da música irreal, onde de mim?, em que encontro impossível com a paz e a plenitude?

(excerto de Aparição, 1959)