12.6.08

[para juntar a estes]

ARTHUR RIMBAUD

Vogais


A negro, É branco, I vermelho, U verde, Ó azul: vogais,
Direi um dia destes vossas ocultas origens:
A, negro colete peludo das moscas infernais
Voltejando em volta de fedores que dão vertigens,

Golfos de sombra. É, canduras de tendas e vapores evanescentes,
Lanças de glaciares orgulhosos, reis brancos, arrepios de umbelas,
I, púrpuras, sangue cuspido, riso de bocas belas
Em plena cólera ou bebedeiras penitentes.

U, ciclos, vibrações divinas dos mares malcheirosos
Paz dos pastos cheios de animais, paz das rugas
Por alquimia impressas na fronte dos grandes estudiosos;

Ó, clarim supremo, cheio de ruídos e estranhas fugas,
Silêncios atravessados pelos Anjos e pelos Mundos:
- Ó Ómega, raio violeta dos seus olhos fundos!

(“subvertido para português” por Manuel Alegre, em Rouxinol do Mundo, publicações Dom Quixote, 1998)

10.6.08

[outros melros LII]

MANUEL ALEGRE

Que porque


Estou diante do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, ao cimo da Calçada de Santana, em Lisboa. Aqui houve outrora o mosteiro do Convento de Santa Ana, destruído pelo terramoto. Não há nenhuma placa, nenhum sinal. Mas Camões foi enterrado aqui, da parte de fora do Convento. Olho o terreno ao lado do Instituto. Ia jurar que é o mesmo onde, embrulhado num lençol, foi sepultado aquele a quem, numa lápide ali mandada colocar mais tarde, D. Gonçalo Coutinho chamaria “o príncipe dos poetas do seu tempo”.
Há um melro a cantar. Ocorre-me um extraordinário livrinho de Philippe Soupault sobre Lisboa, intitulado Carte Postale. Começa assim : “Lisboa é a aurora”. Mais adiante diz que “...cada um dos pássaros de Lisboa sabe de cor um verso dos Lusíadas”.
Talvez haja uma toada de Camões no trinado deste melro. Uma toada. Foi o que para sempre ficou dentro de mim ao ouvir meu pai ler em voz alta versos de Camões. Digo ouvir. Eu ainda não sabia ler, não percebia o sentido, mas ficava fascinado com o ritmo, a toada, a cadência, chame-se-lhe o que se quiser. Digo ouvir porque foi assim que tive a revelação da poesia e da música que há dentro da língua. E porque foi ouvindo o som daquelas vogais e consoantes que aprendi de cor, antes de saber ler, algumas estrofes de Os Lusíadas e alguns sonetos de Camões, além de “Perdigão perdeu a pena”. Uma toada, um ritmo, uma outra forma de música. Que é, ninguém me convence do contrário, a que se ouve no marulhar do Atlântico. As ondas rolam em decassílabos, às vezes em versos de sete sílabas.
Pode acontecer que, sem se dar por isso, comece a dedilhar-se uma guitarra invisível tocando as cordas da sexta e da décima ou, mais raramente, da quarta, da oitava e décima sílabas. Ou então que, de repente, comece a falar-se assim. Ou até a dançar. Camões decassilaba-se em nós. Está no sangue, bate no pulso.
Depois há o “que porque” da Canção IX:
Assim vivo; e se alguém te perguntasse
Canção, como não morro
Podes-lhe responder que porque morro.
Que outro poeta seria capaz de juntar estas duas terríveis e rudes palavras e pô-las a cantar? Que porque. Música. Um acto fundador, momento primordial da poesia de língua portuguesa. Que porque.
Meu pai costumava dizer que a poesia de Camões se pode assobiar. Se calhar é o que o melro está ali a fazer.

(in Relâmpago, nº 20 - 4/2007)
[da raça III]

FERNANDO SYLVAN


janeiro 72



PORTUGAL

Portugal não é só o povo de oitocentos anos vividos
mas também o de oitocentos e oitocentos para viver.
É o que se busca finalmente em fronteiras espirituais mais largas
entre os povos do novo milénio.
O seu estandarte não é já só a Cruz de Cristo
nem o seu missal a biografia do Infante.
Portugal é agora o de novas rotas
para além das de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral
e o de novas esperanças para além do Quinto Império.
Portugal é agora o que despreza o desprezo de Mouzinho pelos pretos
e o dos homens que se erguem na defesa da liberdade em toda a Terra.

Portugal será maior menosr

e pátria das nações de língua portuguesa
que já não cabem n'Os Lusíadas.





lisboa dia da raça junho 72



CORRIGENDA

Nenhum povo é grande por ter apenas fastos a contar,

Mas pelas liberdades que souber viver
E pelo amor que tiver para dar.


(de Tempo Teimoso, 1974)
[da raça II]

CASIMIRO DE BRITO

OS SIGNOS DA CAÇA
«Fraqueza da humana sorte:
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!»
CAMÕES


Em Portugal nascido católico me quiseram, ad
Vitam aeternam, com duas gotas de sal e algumas
Moedas. Português porém não sou nem pátria nem
Deuses além do corpo e da língua onde agora me
Concentro tenho. Antes de mim outros o disseram.

Embora português me descrevam papéis oficiais
Como se rugas severas e velhas cicatrizes de família
Me tivessem transformado em surdas informações
Estatísticas. Português & católico (em minha semi-
Obscuridade) não fui nem sou. Nem essas nem outras

Mutilações incrustadas no tempo que faz de mim
Um cadáver mas onde uma fenda subitamente se
Abre! Húmida fissura entre o meu corpo
E o vosso de cidades desmoronadas. Resposta porém
Não sei para nada. Os mitos da pátria

Renego. E deuses. E amigos e tábuas de lei
Se com pátrias e deuses me limitam ou com outras
Filomitias me limitam o corpo, incêndio reconstruído
À sombra dos ossos. Pátria (se pátria ouso
A meus sinais de som chamar) é este canto devastado,

Esta carnívora linguagem por acaso portuguesa
Em que me lavro e gasto e mato – são estes
Pobres e poucos movimentos derramados
Na pedra do sangue; a memória dos mortos, grandes
E pequenos; a febre e o chão macerado

Do meu país de míldio e alcatruzes; e mais a indústria
Do ódio e do ócio – mas também a filha em seu sono
Deitada; e águas distantes, cerimónias de Eros,
Onde me distendo e uma certa vertigem luminosa
Invento. Como se à morte a vida eu pudesse vender

Tropeço em palavras alucinadas, ar espesso através
Da noite mais canina. Neste pulsar de ruínas
Acumulam-se as cinzas do meu retrato: sangue transfigurado
E sem ogiva! Ávidos dedos, ávida vida que não sabe
De símbolos definitivos, obras de magia

Onde se inscreva o tempo, a morte administrada
Por máquinas incompreensíveis, surdas, subcutâneas
Como ter nascido aqui, praias de Portugal, e não
Onde canto a cal dos ventos, o vazio e o mais seco
Sal. Que dizer porém da luz cicatrizada

Em árvores de cimento? As origens da morte lusitana
Canto: as origens do corpo em seu exercício de salto
Para um sol mais alto. Esse é o lavrar tão débil
Que te mata! Com palavras entaladas na garganta
Canto a morte que me lavra, e nem morte se chama.

(de Labyrinthus, 1981)

[hoje, este poeta, que “Os mitos da pátria / Reneg[a]”, aceitou ser distinguido pelo Estado português como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. A poesia é inconsequente?]
[da raça I]

SÉRGIO GODINHO

DE CORAÇÃO E RAÇA


"Sou português de coração e raça
Não há talvez maior fortuna e graça"
(De um conhecido hino)

Sou português de coração e raça
meio século comido pela traça
fechados numa caixa
e agora ou vai ou racha
e agora ou vai ou racha

Agora vamos é ser
donos do nosso trabalhar
em vez de andar para alugar
com escritos na camisa
e o dinheiro que desliza
do salário prá despesa
compro cama vendo mesa
deito contas à pobreza

Sou português de coração e raça
meio século comido pela traça
fechados numa caixa
e agora ou vai ou racha
e agora ou vai ou racha

Agora vamos é ser
donos do nosso produzir
em vez de ter que partir
com escritos numa mala
e a idade que resvala
do nascimento prá morte
vou pró leste perco o norte
e o meu corpo é passaporte.

Sou português de coração e raça
meio século comido pela traça
fechados numa caixa
e agora ou vai ou racha
e agora ou vai ou racha

(do álbum À queima-roupa, 1974)