30.7.10

HERBERTO HELDER


III


O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura, monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humanidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente
como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia,
corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é a transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gasifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
O actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomima.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral

O actor em estado geral de graça.


(de Poemacto, in Ofício Cantante, Assírio & Alvim, 2009)

25.7.10

VITORINO NEMÉSIO


O AFILHADO


O meu afilhado epiléptico veio ver-me,
Veio verme.
Verme não é. E, se fosse, isso que tinha?
os anelídeos têm os seus anéis elásticos,
Num começo de élan superior, bem soldado,
A blocos de controle e direcção,
Enquanto que ele a perde em centros altamente sinápticos
E fica pobre e triste entre os apáticos.

O meu afilhado epiléptico
Veio ver-me,
Veio verme,
Veio ecléctico,
Entre os que sim e os que não,
Quase empastado e céptico
Num sorriso de vã resignação.
Fosse ele verme, o pobrinho, e até crustáceo!
Teria o sistema nervoso ao longo da barriga,
Táctico nas antenas de precisão, como a formiga.
Mas tem espinha dorsal e cabos de nervo de alto diâmetro,
Mas deviam ser rápidos e senhoris na opção,
Mas às vezes não são...
O meu pobre afilhado epiléptico,
Eterno aprendiz de sapateiro,
Aplicando serol a fibras de coiro para botas
E fazendo virolas
De meias solas
Rotas.

- E ganhas...? – lhe pergunto.
- Vinte paus, meu Padrinho,
«E não posso beber vinho:
«Nem um copinho,
«Meu Padrinho!»

O meu afilhado epiléptico veio ver-me,
E pensei no Pessanha:
«Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
»
Vinte paus é o que ganha
O meu afilhado epiléptico,
Com os dedos no unto.

Patético, hein?
Mas – mudemos de assunto.

28 de Junho de 1971.


(de Limite de Idade, 1972)