PEDRO TAMEN
45.
Acocorado como estava o escriba,
só não escrevendo, mas escravo sou
da matéria animal que do distante campo
veio curtida com ecos de verdura
e de tão lenta, infinda paciência.
Como ele cumpro destino de invenção,
de leve e não sabida descoberta
do mundo incompleto.
Mundo incompleto, e certo,
esse que preenche a minha cave
e lhe rasga as paredes.
(de O livro do sapateiro, publicações Dom Quixote, 2010)
5.6.10
4.6.10
[Prémio Camões 2010 - ouvir a evocação feita por Fernando Alves, na TSF]
FERREIRA GULLAR
SETE POEMAS PORTUGUESES
8
Quatro muros de cal, pedra soturna,
e o silêncio a medrar musgos, na interna
face, põe ramos sobre a flor diuturna:
tudo que é canto morre à face externa,
que lá dentro só há frieza e furna.
Que lá dentro só há desertos nichos,
ecos vazios, sombras insonoras
de ausências: as imagens sob os lixos
no chão profundo de osgas vis e auroras
onde os milagres são poeira e bichos;
e sobretudo um tão feroz sossego,
em cujo manto ácido se escuta
o desprezo a oscilar, pêndulo cego;
nada regula o tempo nessa luta
de sais que ali se trava. Trava? Nego:
no recinto sem fuga — prumo e nível —
som de fonte e de nuvens, jamais fluis!
Nem vestígios de vida putrescível.
Apenas a memória acende azuis
corolas na penumbra do impossível.
(de A Luta Corporal, 1954)
FORA DA LUZ
Derrubado em seu corpo na trevosa
boca doce da carne que o engole
como um sexo, dorme. E é lume o sono
que em vão se queima pelas torres jovens
Dorme fora da luz no velho esgoto
onde as harpas. Outubro flamabrando.
Às suas portas de carne adormecidas
a corneta do mar abandonamos
Resta o teu rosto solto a terra sacra
as aranhas de sal tecendo um cubo
Treme em teu lábio do dia assassinado
O sol o girassol a flama surda
Resta o facho de borco a flor perdida
o homem mordendo a sombra desse facho
As coroas da terra dissipando
seu escuro clamor na luz. E resta
de tal fogo tal facho trabalhado
às portas desse homem a leste dele
Fogo poeira pó pólvora acesa
na epiderme comum. Bonjour, Madame!
(de O Vil Metal, 1960)
DOIS E DOIS: QUATRO
Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena
como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena
— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.
(de Dentro da Noite Veloz, 1975)
VERSOS DE ENTRETER-SE
À vida falta uma parte
— seria o lado de fora —
pra que se visse passar
ao mesmo tempo que passa
e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta.
À vida falta uma porta.
(de Barulhos, 1987)
(in Obra Poética, edições Quasi, 2003 - Arranjos para Assobio)
FERREIRA GULLAR
SETE POEMAS PORTUGUESES
8
Quatro muros de cal, pedra soturna,
e o silêncio a medrar musgos, na interna
face, põe ramos sobre a flor diuturna:
tudo que é canto morre à face externa,
que lá dentro só há frieza e furna.
Que lá dentro só há desertos nichos,
ecos vazios, sombras insonoras
de ausências: as imagens sob os lixos
no chão profundo de osgas vis e auroras
onde os milagres são poeira e bichos;
e sobretudo um tão feroz sossego,
em cujo manto ácido se escuta
o desprezo a oscilar, pêndulo cego;
nada regula o tempo nessa luta
de sais que ali se trava. Trava? Nego:
no recinto sem fuga — prumo e nível —
som de fonte e de nuvens, jamais fluis!
Nem vestígios de vida putrescível.
Apenas a memória acende azuis
corolas na penumbra do impossível.
(de A Luta Corporal, 1954)
FORA DA LUZ
Derrubado em seu corpo na trevosa
boca doce da carne que o engole
como um sexo, dorme. E é lume o sono
que em vão se queima pelas torres jovens
Dorme fora da luz no velho esgoto
onde as harpas. Outubro flamabrando.
Às suas portas de carne adormecidas
a corneta do mar abandonamos
Resta o teu rosto solto a terra sacra
as aranhas de sal tecendo um cubo
Treme em teu lábio do dia assassinado
O sol o girassol a flama surda
Resta o facho de borco a flor perdida
o homem mordendo a sombra desse facho
As coroas da terra dissipando
seu escuro clamor na luz. E resta
de tal fogo tal facho trabalhado
às portas desse homem a leste dele
Fogo poeira pó pólvora acesa
na epiderme comum. Bonjour, Madame!
(de O Vil Metal, 1960)
DOIS E DOIS: QUATRO
Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena
como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena
— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.
(de Dentro da Noite Veloz, 1975)
VERSOS DE ENTRETER-SE
À vida falta uma parte
— seria o lado de fora —
pra que se visse passar
ao mesmo tempo que passa
e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta.
À vida falta uma porta.
(de Barulhos, 1987)
(in Obra Poética, edições Quasi, 2003 - Arranjos para Assobio)
3.6.10
GIUSEPPE UNGARETTI
OS RIOS
Cottici, 16 de Agosto de 1916
Apego-me a esta esgarçada árvore
abandonada nesta ribanceira
que tem a languidez
de um circo
antes ou depois do espectáculo
e olho
a imóvel passagem
das nuvens sobre a lua
Esta manhã recostei-me
numa urna de água
e como uma relíquia
repousei
O Isonzo fluindo
alisava-me
como a um dos seus seixos
Levantei
os meus quatro ossos
e deslizei
como um acrobata
sobre a água
Acocorei-me
junto à minha roupa
suja de guerra
e como um beduíno
me curvei para receber
o sol
Este é o Isonzo
e aqui mais que nunca
me reconheci
dócil fibra
do universo
O meu suplício
surge quando
não me creio
em harmonia
Mas essas ocultas
mãos
que me modelam
ofertam-me
a rara
felicidade
Rememorei
as épocas
da minha vida
Estes são
os meus rios
Este é o Serchio
do qual retiram água
há quase dois mil anos
gente minha campesina
e meu pai e minha mãe
Este é o Nilo
que me viu
nascer e crescer
e arder de inocência
nas vastas planícies
Este é o Sena
em cujas águas turbulentas
me debati
até me reconhecer
Estes são os meus rios
lembrados no Isonzo
Esta é a minha nostalgia
que em cada um
se me transparece
agora que é de noite
e a minha vida me parece
uma corola
de trevas
(de Vida de um Homem (Escolha poética), tradução do italiano por Luís Pignatelli, Hiena editora, 1987 - colecção Cão Vagabundo)
OS RIOS
Cottici, 16 de Agosto de 1916
Apego-me a esta esgarçada árvore
abandonada nesta ribanceira
que tem a languidez
de um circo
antes ou depois do espectáculo
e olho
a imóvel passagem
das nuvens sobre a lua
Esta manhã recostei-me
numa urna de água
e como uma relíquia
repousei
O Isonzo fluindo
alisava-me
como a um dos seus seixos
Levantei
os meus quatro ossos
e deslizei
como um acrobata
sobre a água
Acocorei-me
junto à minha roupa
suja de guerra
e como um beduíno
me curvei para receber
o sol
Este é o Isonzo
e aqui mais que nunca
me reconheci
dócil fibra
do universo
O meu suplício
surge quando
não me creio
em harmonia
Mas essas ocultas
mãos
que me modelam
ofertam-me
a rara
felicidade
Rememorei
as épocas
da minha vida
Estes são
os meus rios
Este é o Serchio
do qual retiram água
há quase dois mil anos
gente minha campesina
e meu pai e minha mãe
Este é o Nilo
que me viu
nascer e crescer
e arder de inocência
nas vastas planícies
Este é o Sena
em cujas águas turbulentas
me debati
até me reconhecer
Estes são os meus rios
lembrados no Isonzo
Esta é a minha nostalgia
que em cada um
se me transparece
agora que é de noite
e a minha vida me parece
uma corola
de trevas
(de Vida de um Homem (Escolha poética), tradução do italiano por Luís Pignatelli, Hiena editora, 1987 - colecção Cão Vagabundo)
2.6.10
TERESA TUDELA
Estas palavras que se dizem
como quem despeja um balde de água suja no tanque
que se dizem
não pra agredir o tanque
mas pra despejar o balde
mas que doem
como ferem
como ganham vida de punhos cerrados
mal se soltam no ar
como o filho que nos nasceu
e cresceu
e se fez seu contra nós
estas palavras crescem
no espaço de ar
do caminho percorrido
e no caminho se tomam
o corpo do som que têm
libertam-se da intenção primeira
refazem-se da mutilação sofrida
são elas no seu todo inteiro
o inteiro peso
o volume prenhe
com que esmagam
e entopem
o esgoto do tanque indefeso
(de No Côncavo da Aresta, edição da Autora, 1982)
Estas palavras que se dizem
como quem despeja um balde de água suja no tanque
que se dizem
não pra agredir o tanque
mas pra despejar o balde
mas que doem
como ferem
como ganham vida de punhos cerrados
mal se soltam no ar
como o filho que nos nasceu
e cresceu
e se fez seu contra nós
estas palavras crescem
no espaço de ar
do caminho percorrido
e no caminho se tomam
o corpo do som que têm
libertam-se da intenção primeira
refazem-se da mutilação sofrida
são elas no seu todo inteiro
o inteiro peso
o volume prenhe
com que esmagam
e entopem
o esgoto do tanque indefeso
(de No Côncavo da Aresta, edição da Autora, 1982)
1.6.10
NUNO DEMPSTER
DA IMPOSSIBILIDADE
A luz do sol está além do ocaso.
Não me refiro a um deus,
nem sequer ao delírio
da palavra perpétuo,
adjectivo da morte,
da qual também não trato
nem faço nenhum voto, indiferente
de indiferença altiva.
Igualmente não falo do passado,
pelo menos daquele que não cessa
de circular imagens como sombras
que não chamam por nós.
Quando digo que a luz do sol
está além do ocaso é porque
não pode tocar-se essa luz,
ninguém pode ir por ela para além dela:
do mesmo modo, a tua face não se dá,
os olhos já estranhos, sem o brilho
que liga o corpo ao corpo
quando o corpo parece ultrapassar-se,
o que, só para meu consolo,
digo ser um processo bioquímico
daquilo a que é costume chamar-se alma,
madre de sentimentos comburentes
e, quem sabe, de enganos da memória.
(de Confluências, in Dispersão, edições Sempre-em-Pé, 2008)
DA IMPOSSIBILIDADE
A luz do sol está além do ocaso.
Não me refiro a um deus,
nem sequer ao delírio
da palavra perpétuo,
adjectivo da morte,
da qual também não trato
nem faço nenhum voto, indiferente
de indiferença altiva.
Igualmente não falo do passado,
pelo menos daquele que não cessa
de circular imagens como sombras
que não chamam por nós.
Quando digo que a luz do sol
está além do ocaso é porque
não pode tocar-se essa luz,
ninguém pode ir por ela para além dela:
do mesmo modo, a tua face não se dá,
os olhos já estranhos, sem o brilho
que liga o corpo ao corpo
quando o corpo parece ultrapassar-se,
o que, só para meu consolo,
digo ser um processo bioquímico
daquilo a que é costume chamar-se alma,
madre de sentimentos comburentes
e, quem sabe, de enganos da memória.
(de Confluências, in Dispersão, edições Sempre-em-Pé, 2008)
30.5.10
HAROLD PINTER
A Mesa
Janto demoradamente
Todo este tempo
Aos meus pés ouço-os
Cair na gordura
Em queijo e ovos
Em ossos de fim de semana
O ruído da luz
Deixou o meu nariz.
Tatuado por tudo o que
Não podia ver
Murmuro na
Minha orelha mais surda
O meu nome apagado
Já esteve aqui
Ou então um bluff total
Conservou-o cuidadosamente.
A isto encadeado
Apaixonado por isto
Avanço de gatas
Sem dizer palavra
E cheio de homenagens
Açambarco os restos
Sem fôlego,
Por baixo desta enorme mesa.
(tradução de Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, in Várias Vozes, edições Quasi, 2006 - Biblioteca Primeiras Pessoas)
A Mesa
Janto demoradamente
Todo este tempo
Aos meus pés ouço-os
Cair na gordura
Em queijo e ovos
Em ossos de fim de semana
O ruído da luz
Deixou o meu nariz.
Tatuado por tudo o que
Não podia ver
Murmuro na
Minha orelha mais surda
O meu nome apagado
Já esteve aqui
Ou então um bluff total
Conservou-o cuidadosamente.
A isto encadeado
Apaixonado por isto
Avanço de gatas
Sem dizer palavra
E cheio de homenagens
Açambarco os restos
Sem fôlego,
Por baixo desta enorme mesa.
1963
(tradução de Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, in Várias Vozes, edições Quasi, 2006 - Biblioteca Primeiras Pessoas)
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