6.9.03

GIACOMO LEOPARDI

Nasceu em Recanati, em 1798.
Filho de uma família da alta nobreza, , recebeu uma riquíssima educação desde tenra idade, à custa, no entanto, de uma situação de dolorosa clausura, motivada pela austeridade e disciplina maternas. Rapidamente os seus mestres eclesiásticos são dispensados, pois Giacomo revela-se brilhante ao ponto de os superar. Antes dos 15 anos já dominava as principais línguas modernas - francês, inglês e espanhol - , as clássicas e ainda o árabe, o hebraico e o sânscrito.
Começou a compôr o essencial da sua obra por volta dos 20 anos e é considerado um dos mais importantes poetas italianos a par de Dante e Petrarca.
Morreu em Nápoles, em 1837.


A Si Mesmo

Repousa para sempre,
exausto coração. Morto é o engano extremo
que eu supusera eterno. É morto. E sinto
que em nós de enganos caros
a mais da esp?rança, o desejar é extinto.
Repousa. Já bastante
hás palpitado. Coisa alguma vale
o teu bater, nem de saudade é digna
a terra. Tédio amargo
a vida, e nada mais; a lama é o mundo.
Quieto, pois. Desespera
por uma última vez. À raça humana o fado
não deu mais que o morrer. Ora despreza
a natureza, o triste
brutal poder que contra nós impera,
e o infinito vácuo do que existe.

(Tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 séculos, 3ª ed: edições Asa, 2001)


Scherzo

Um menino inda eu era,
Com as Musas entrei em disciplina;
Uma delas pegou na minha mão,
E em todo aquele dia
Assim me conduzia
Em visita à oficina.
Mostrou-me parte a parte,
As ferramentas da arte
E os serviços diversos
P'ra que cada, a rigor,
Se emprega no lavor
Das prosas e dos versos.
Eu olhava e inquiria:
«Musa, a lima onde está?» E eis me dizia:
«Gastou-se, a lima; agora, andem sem ela.»
E eu: «Mas de a arranjar
Não cuidais - ajuntei - quando está cega?»
Volveu-me: «Sim; mas tempo - esse, não chega.»

(tradução de Pedro da Silveira, in Mesa de Amigos, Direcção Regional dos Assuntos Culturas dos Açores, 1986 - há uma reedição recente, revista aumentada, da Assírio & Alvim)


À Lua

Lembro-me, ó graciosa lua,
Que há um ano, sobre esta colina,
Cheio de angústia, eu vinha contemplar-te:
E tu pendias então sobre a floresta
Como fazes agora, iluminando-a por completo.
Mas velado e trémulo do pranto
Que me assomava aos olhos o teu rosto
Me parecia, que laboriosa
Era a minha vida: e ainda o é, nem muda de feição,
Ó minha amada lua. E todavia faz-me bem
Esta lembrança e o contar a idade
Da minha dor. Oh!, como é doce,
No tempo da juventude, quando ainda longo
É o curso da esperança, breve o da memória,
A lembrança das passadas coisas,
Embora triste e embora as fadigas durem!

(de Cantos, apresentação, selecção, notas e tradução de Albano Martins, prefácio de João Bigotte Chorão e acompanhado de uma pintura de Armando Alves, Vega, s/d)


O Infinito

Sempre gratas me foram esta colina tão só
E esta sebe alta e extensa
Que não deixa ver o último horizonte.
Mas quando me demoro a contemplá-la
O meu espírito gera para além dela
Intermináveis espaços, silêncios sobre-humanos
Uma paz escura, profunda; e pouco falta
Para o terror me assaltar o coração. E quando
Ouço o vento sussurrar nas plantas
Comparo o infinito de tanto silêncio
A esta voz, e lembro-me da eternidade
Das estações mortas, do tempo presente
E vivo, do seu murmúrio brando. Assim
Se aniquila o meu espírito na imensidão:
E é-me grato naufragar neste mar.

(tradução de Ernesto Sampaio, in Rosa do Mundo, Assírio & Alvim, 2001)

4.9.03

PLUTARCO

Nasceu no ano 45, em Queroneia, perto de Tebas.
Foi aluno da Academia de Atenas e fez várias viagens pela Ásia, pelo Egipto e pela península itálica. Exerceu funções cívicas e religiosas de relevância e tinha direito de cidadania em Atenas, Delfos e Roma, além da sua cidade natal.
A tradição atribui-lhe cerca de 200 obras, tendo chegado aos nossos dias cerca de 120, entre biografias e outros escritos diversos.
Morreu por volta de 125, tendo-lhe sido feitas numerosas homenagens póstumas.



A princípio [Sólon] dedicou-se à poesia por divertimento, para deleitar os seus ócios, sem nunca tratar assuntos sérios. Mais tarde, pôs em verso máximas filosóficas e introduziu, nos poemas, diversas coisas relativas à sua administração política, não para as historiar e conservar delas recordação, mas para fazer a apologia da sua conduta. Fazia também neles exortações, dava conselhos aos atenienses e algumas vezes até lhes dirigia ásperas censuras. Diz-se ainda que tentou pôr as suas leis em verso e cita-se o começo:

Possam, pelo favor do deus supremo,
Estas leis gozar sempre o melhor êxito!


A exemplo dos sábios do seu tempo, cultivou principalmente a parte da moral que trata da política. Em física apenas tinha conhecimentos muito superficiais, como se vê por estes versos:

A neve fecundante e o granizo homicida
Formam-se nas nuvens, e o raio fulminante
Brota do relâmpago: os ventos impetuosos
Agitam nos oceanos as revoltas ondas;
Se não fosse o brinquedo dum sopro terrível,
O mar dos elementos seria mais calmo.


Em geral, foi Tales, de todos os sábios, o único que levou a teoria das ciências além das coisas habituais; todos os outros deveram a sua reputação de sabedoria apenas aos seus conhecimentos políticos.

(de Sólon, Legislador de Atenas, tradução de Lobo Vilela, editorial Inquérito, 1938)
[Sólon foi aristocrata, poeta e estadista ateniense, viveu nos séculos VII e VI a. C., possivelmente entre 640 e 558. Segundo a tradição, foi um dos Sete Sábios da Grécia, tendo feito grandes viagens e exercido diversos cargos cívicos]

3.9.03

por falar em espanhóis, aqui vai um blog jeitoso: Uno que pasaba
FRANCISCO BRINES

Nasceu em Oliva, Valência, em 1932.
Poeta e ensaísta, licenciado em Direito e com estudos em Letras e Filosofia, foi leitor de espanhol em Oxford durante dois anos.
Em Portugal forma publicados dois livros de poesia sua: Ensaio de uma Despedida, Antologia (1960-1986), em 1987 e A Última Costa, em 1997 - ambos pela Assírio & Alvim e com tradução de José Bento. Está também representado na Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea, do mesmo tradutor e da mesma editora.


Habrá que cerrar la boca
y el corazón olvidarlo.
Dejarlo sin luz, sin aire,
como un hombre encarcelado,
y habrá que callarlo todo
lo que nos pueda hacer daño.
Cuando se caigan los muros
tendrá su rostro afilado,
y una dureza de piedra
encadenándole el canto.
Si respira dolerá,
dolerá tocar sus manos
eternas y solitarias,
y nadie podrá abrazarlo.
Que habrá quedado seco
como un árbol por el rayo,
que será una cordillera
de espinos, de pinchos bravos,
y no habrá una sola fuente
que corra por su barranco.
Su corazón será un cráter
apagado, que sin llanto,
que sin llanto.


(de Las Brasas, 1960 - incluído em Poesia Completa (1960-1997), Tusquets editores, 2ª ed: 1999)


A boca será fechada
e o coração esquecido.
Deixado sem luz, sem ar,
como alguém encarcerado,
e será calado tudo
o que nos possa causar dano.
Quando caírem os muros
terá seu rosto afilado,
e uma dureza de pedra
encadeando-lhe o canto.
Se respirar vai doer
vai doer tocar-lhe as mãos
eternas e solitárias,
sem que alguém possa abraçá-lo.
Pois terá ficado seco
como árvore por raio,
pois será uma cordilheira
de espinhos, de picos bravos,
e nem sequer uma fonte
irá correr em barranco.
Seu coração será cratera
apagada, pois sem pranto,
pois sem pranto.

[tradução minha]

2.9.03

[dois poemas de amor (!!) a propósito do que se diz hoje no RAE]

RÁDIO MACAU

logo se vê
(letra de Vitinha)

Piscar de olho
ao Alexandre O'Neill
"o amor é o amor e depois!".
O resto porém não tem nada
a ver, ele que me desculpe
de lá onde estiver.


O amor é o amor. E então??
Deixa-o ser o que é,
ou então deixa-o da mão.
E o resto logo se vê,
mais logo.
Pouca fé. É a fé que temos.
E então?
Deixa-a ser o que é, ou então
deixa-a da mão.
E o resto logo se vê,
mais logo.
Almas gémeas não conheço.
Sei é de almas siamesas,
que de ser tão iguais são
só meias e presas.
E então faço uma cedência
ao cansaço. E então passo.
Mais logo se vê.
Deixa ser o amor como ele for.
deixa ser a fé como ela é.
Mais logo se vê.

(do álbum A Marca Amarela, BMG, 1992 - creio que só existe ainda em vinil)



ALEXANDRE O'NEILL

O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? Somos dois? -
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?!

(de Abandono Vigiado, 1960)
A GRANDE REPORTAGEM

Comecei a comprar a GR no número 10, que trazia na capa uma fotografia de guerrilheiros timorenses e no interior um belíssimo texto do director de então, Miguel Sousa Tavares, sobre Ruy Cinatti.
A partir daí, todos os meses repeti o gesto de pegar na GR num qualquer quiosque e começar a folhear antes ainda de pagar. Não sei bem porquê, mas nunca "consegui" tornar-me assinante (tenho 5 impressos preenchidos para esse efeito, que nunca cheguei a enviar!) - acho que foi por receio de certos carteiros...

Entretanto fui comprando os números em atraso, faltando-me sempre o "mítico" nº 1 (da 2ª série). Procurava-o por alfarrabistas e geralmente encontrava-o... a preços assustadores - cheguei a ouvir o preço de 7.500$00!!! Até que um dia, numa venda de coisas velhas o comprei por... 150$00.

Não acredito que qualquer outra publicação destinada a um público genérico consiga gerar um tão grande grau de afectividade como a GR.
Coerência e variedade das matérias; opiniões fundadas; entrevistas a pessoas que sabem, de facto, das coisas e que têm, de facto, coisas para dizer; debate abrangente, sem chegar à confusão; denúncia de (pequenas e grandes) situações de injustiça e/ou aberrantes, sem alarmismos, mas com firmeza e tenacidade; qualidade das imagens e do grafismo; qualidade da impressão; escrita cuidada, geralmente elegante e, sobretudo, inteligível - são alguns dos elementos que tornam a GR indispensável nas minhas leituras do mundo e admirador de quantos a têm feito.

Posso, como leitor, subscrever o que diz o director "nunca fomos pessimistas, embora muitas vezes a desilusão aparecesse em muitos parágrafos".

A GR vai mudar de formato e de periodicidade e vai perder a autonomia na distribuição. Vou sentir saudades, mesmo sabendo que a qualidade se vai manter.

Vão continuar, naquele canto do quarto, os exemplares cuidadosamente empilhados, para continuar a reler.

Até breve, GR!

31.8.03

[gosto muito de inventários X]

ALBERTO PIMENTA

Gostos


1
...........................................................

2
sobras do rancho

3
caldo e toucinho

4
caldo de couves
chouriço com ovos

5
sopa de batata
carne guisada com batatas
vinho tinto

6
sopa de tomate
escalopes
macarrão
fruta
vinho branco

7
sopa primavera
pescada cozida
bife com ovo a cavalo
batatas fritas
esparregado
pudim
vinho branco, vinho tinto
café

8
sopa jeanette
linguado grelhado
tomates ricadona
frango na pucarinha
batatas estufadas
arroz crioulo
azeitonas receadas à moda da dona ema
queijo da serra
fruta
vinhos da região
café. brandy

9
cassolettes robert
anjos a cavalo
croquetes de marisco
salada astória
ganso do périgord
batatas saint fleur
queijos
perfeito de framboesa
montrachet branco. nuits-saint-georges les porets
café
conhaque

10
œufs à la coque truffés
anguilles d’arleux à la maître
civet de langouste au vin de banyuls
chevreau à l’ail vert
haricots à la vigneronne
salade angevine
fromages
navettes aux amandes
petit chablis. chambolle-musigny les amoureuses
les charmes
café
cognac
licores

11
consommé royal
homard à la bordelaise
truffes en cocotte selon colette
œufs pochés au champagne
râble de lièvre à la pirou
fenouil au vin rouge
riz condé
châtaignes limousines
fromages
parfait de chocolat
pomme maria stuart
riesling d’alsace. cheilly-les-maranges. givry.
merleau-ponty
café
liqueurs
cognac

(de Ascensão de Dez Gostos à Boca, 1977 - reproduzido em Obra Quase Incompleta, Fenda, 1990)
[gosto muito de inventários IX]

[inevitavelmente]
ALEXANDRE O'NEILL

Inventário


Uma palavra que se tornou perigosa
Um marinheiro dum país «amigo»
Uma pobre mulher tuberculosa
E a mulher orgulhosa que persigo

A velhinha que passa no buíque
Um incêndio prestes a romper
E as ruas as ruas onde vi
O que ainda não sei ver

Uma praia elegante um estendal
De belos corpos indolentes
E as últimas mentiras dum jornal
A propósito de factos recentes

Um senhor absolutamente sério
Um doutor que esteve por um triz
P'ra fazer parte dum novo ministério
E um velho muito velho que nos diz


Avesso à multidão aos seus gritos de louca
Tenho contudo um grande amor ao Homem
Mas cuidado Uma ideia não vive sem o pão da boca
Por aquilo que não sou não quero que me tomem

Outro senhor absolutamente honesto
Ainda a velhinha do buíque
E o velho muito velho diz o resto
Diz o resto e é para que fique


Meu lema é conhecido minha voz muito menos
Mas o que digo chega ao vosso coração
Por caminhos discretos preciosos serenos
Como um selo raro a uma colecção

(E num silêncio que toda a gente ouvia
Só a mosca deu sinal de si
Dizendo com graça e ironia

Ó Cesário Verde como eu queria
Que estivesses aqui!)

(de No Reino da Dinamarca, 1958)
[gosto muito de inventários VIII]

Vejam a fantástica PANÓPLIA DO FETICHISTA CINÉFILO que umblogsobrekleist está a fazer.
(com as entradas de 5ª feira e de ontem, já conta com 20 itens e promete ir até ao 100)
[gosto muito de inventários VII]

ANTÓNIO SERRÃO DE CRASTO (1613?-1685?)

(...)
Nasceu o menino como um leicenço, cresceu como uma erva má e teve tantas partes como as maleitas; porque o seu rosto era de sapata, o cabelo de estriga de linho, a cabeça de Monte-achique, os cascos de cebola, a testa de pão, as orelhas de abade, as sobrancelhas um arco de pipa, outro de ponte, as pestanas de vestido, um olho de couve, outro de alface, o nariz de lambique, as bochechas de odre, a boca de forno, os beiços de alguidar, os dentes de serra, a língua de trapos, os bigodes de Herodes, as barbas de pincel, o pescoço de grou, o peito de armas, a barriga de bichos, as costas de canastra, os braços de mar, uma mão de graal e outra de almofariz, as pernas de noz, as canelas de tecelão, um pé de cravo, outro de cantiga; e, porque não fique parte por descrever, tinha, para vossa mercê saber, cu de inglês, membro de justiça, túbaras da terra e tudo isto cobria com a pele de todos os diabos.
A estas partes de demandas que tinha do carnaz para fora se ajuntavam muitas adquiridas de portas adentro; porque sabia como gaita, falava como gralha, tangia um burro, cantava como um grilo, bailava como uma carapeta, era corrente como água em charco; tanto que chegou a ser homem de ganhar, vestiu-se com toda a bizarria: chapéu de sol, véu de freira, volta de dança, cabeção de sisa, camisa de muralha, ceroulas de horta, gibão de açoites, calças de frango, vaqueiro de gado com botões de fogo, mangas de arcabuzeria, com bocais de poço, punhos de espada, uma liga de dinheiro, outra de solda, com pontas de lança, uma meia anata, outra meia irmã, um sapato a bica do sapato, outro gato-sapato, capote de centos, espada de baralhas de cartas com maçã de cipreste, punho seco, cabos de sapateiro, folha de couve, bainha de entre ambas as faces, conteira a mulher de um conteiro, e todo o vestido tinha guarnição de soldados e era cosido com agulha de marear e linhas do exército.
(...)

(de Novela Disparatória do Gigante Sonhado, publicado como apêndice a Os Ratos da Inquisição, do mesmo Autor, pela editora Contexto em 1981, com actualização ortográfica e notas de Manuel João Gomes / 1ª ed: oficina de Pedro Ferreira, 1745)
[gosto muito de inventários VI]

JORGE DE SENA

Ode ao surrealismo por conta alheia


Que levas ao colo,
Embrulhado em sarrafaçais transcritos mau olhado abomináveis trutas e outros preconceitos?
Um sacerdote? Um gato? A timidez?

Que transportas silencioso, imóvel, como dormindo, no xaile pespontado e verde com que limpas o suor, o sémen, as fezes, tudo o que abandonas, ofereces, vendes, expulsas, injectas, convoscas, reprovas, descreves, etc.?
Embalas e não respondes.

Temes a polícia, o tapete, o capacho, o telefone, as campainhas de porta, as pessoas paradas pelas esquinas reparando em por de baixo das roupas das outras que passam?
Temes as palavras?
Temes que saiam versos, lágrimas, casamentos, satisfações apressadas em campos de arrabalde?
Temes os partidos, os artigos de fundo, os banqueiros, as capelistas, a inflação, as úlceras do estômago ou sociais?

Que transportas ao colo
em silêncio e num xaile?
É a vida? Anúncios luminosos? Casas económicas? O mar? irmãos? Reivindicações? Um livro?
Embalas e não respondes.

É a vida? A noite que cai? As luzes distantes? Um gesto? Um olhar? Um quadro? Uma poesia lírica?

(oportunamente interrompida pela chegada de uma pessoa conhecida)

(de Pedra Filosofal, 1950)
[gosto muito de inventários V]

RUI MANUEL AMARAL

Inventário

Duas esculturas em pedra de mestre mateo (séc. xiii)
dois zurbaran, um luis de morales,
um elegante e suave cristo muerto sostenido por um ángel,
o inquietante retrato de juan rizi,
la dolorosa de murillo, um valdés leal,
outro carreño, um claudio coello,
os retratos de felipe iv e do conde de benavente,
ambos de velazquez.
A raiva e a sua fonte mais apaixonada,
o amor.

(de Quartzo, Feldspato e Mica, obra incluída em Com faca e garfo - colectânea de textos Jovens Criadores 2001, co-edição: Íman edições e Clube Português de Artes e Ideias, 2002)
[gosto muito de inventários IV]

AUTUAÇÕES RESPEITANTES AO POLICIAMENTO URBANO

todos os CD


Da fiscalização urbana efectuada, resultaram as seguintes autuações:

- Alaridos..........56
- Estabelecimentos sem licença..........41
- Falta de boletim de sanidade..........39
- Falta de registo, vacina e açamo nos cães..........48
- Jogar a bola na via pública..........28
- Jogos não autorizados..........6
- Lançar água suja e lixo para a via pública..........8
- Ofensas à dignidade moral das pessoas..........1
- Pejamento na via pública..........51
- Reuniões ilegais..........4
- Sacudir tapetes para a via pública..........3
- Urinar na via pública..........8
- Vendedores ambulantes..........191
- Diversas..........115
TOTAL..........................................................................599

(de um Relatório enviado pelo Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública ao Director-Geral de Segurança em 24 de Abril de 1974, EDIÇÕES AFRODITE, Maio de 1974)
[gosto muito de inventários III]

MÁRIO CLÁUDIO

Eis senhores do que se precisa para continuar a farsa: 1 gaiola 1 túmulo 1 boca do Inferno: 1 túmulo de Guido 1 túmulo de Dido 1 armação de cama: 8 lanças 1 par de escadas para Faetonte: 2 campanários & 1 carrilhão & 1 farol: 1 vitelo para a peça de Faetonte: 1 globo & 1 ceptro doirado: 3 maçãs 2 maçapães & a Cidade de Roma: 1 velo de oiro 2 raquetes 1 loureiro: 1 machadinha de madeira 1 machadinha de couro: 1 dossel de madeira a cabeça do velho Maomé: 1 pele de leão 1 pele de urso: & os membros de Faetonte & o carro de Faetonte & a cabeça de Argos o tridente & a grinalda de Neptuno: 1 bordão a perna de pau de Kent a cabeça de Íris & o arco-íris: 1 altarzinho & 2 feiticeiros a regra de Tamberlão: 1 alvião de madeira o arco e a aljava de Cupido: o tecido do Sol e da Lua: 1 cabeça de javali & as 3 cabeças de Cérebro: 1 caduceu 2 margens de musgo & 1 cobra: 2 leques de penas o estábulo de Bellendon 1 árvore de maçãs de oiro 1 árvore de Tântalo & 9 escudos de ferro: 1 escudo de cobre & 8 florestas: 1 armadura de grevas & 1 sinal para a Mãe Redcap 1 broquel as asas de Mercúrio o retrato de Tasso: 1 elmo com um dragão 1 escudo com 2 leões 1 bola de ulmeiro 1 cadeado de dragões 1 lança dourada: 2 caixões 1 cabeça de touro 3 adufes 1 dragão para Fausto 1 leão 2 cabeças de leão 1 cavalo grande e suas penas: 1 sacabucha 1 roda & 1 armação para o Cerco de Londres: 1 par de luvas lavradas 1 mitra de Papa: 2 coroas imperiais 1 coroa simples 1 coroa de fantasmas 1 coroa com o Sol: 1 armação para o toucado de Black Joan: 1 cão negro 1 caldeirão para o Judeu:

(de Damascena, Contexto, editora, 1983)
[gosto muito de inventários II]

JOSÉ SESINANDO

Onde?

Baden-Baden, Spitzberg, Salzburgo?
Acapulco, Vera Cruz, Pequim?
Thebas, Sebastopol, Hamburgo?
Nova Deli? Não? Ou Nova Iorca? Sim?
Saint-Etienne, Boston, Johanesburgo -
apartheid à parte em tempo inteiro?
Kansas City, Termópilas, Nanterre?
Rejkiavik, Puchóv, Iowa, Erre
de Janeiro?
Cartago, Liverpool, Fez ou Almodôvar?
Londonderry, Santarém, Amsterdam?
Nova Deli? Sim? Ou Nova Iorca? Nam?
A terra de Bolívar (ou para rimar Bolôvar)?
Postojna, Cairo, Loano, Figueiró
dos Vinhos? Reno, Colares, Chianti, Dão?
(Muito obrigado, mas só à refeição.)
Tanganika, Massachussets, Pampilho-
sa? Paris, Bornéu, Kalamazoo?
Nova Deli? Não? Sim? Ou na O. N. U.?
Brza Palanka? Bu Ngem? (Faça favor
de repetir.) Bu Ngem? Brza Palanka?
Bridgehead, Brest, Salamalanca?
Alhos Vedros, San Marino, Andorra?
Liechtenstein, Sarre, o Corredor
de Danzig, mesmo que não corra?

Onde, onde, onde? Dizei-me, por amor
de Deus - antes que eu repita a rima
de forma mais justa (e malcriada, inda por cima).

(de Obra Ântuma, publicações Europa-América, 1986)
[gosto muito de inventários I]

MANUEL DE FREITAS

Poema Sumário das tabernas de Lisboa

Rua de São Marçal n.º 56, rua de Campo de
Ourique n.º 39, rua de São Bento n.º
432, rua da Cruz dos Poiais n.º 25A. Calçada
do Combro n.º 38B, rua da Atalaia n.º13,
rua de São Miguel n.º 20, rua da
Rosa n.º 123. Travessa do Conde de Soure n.º 7,
travessa dos Remolares n.º 21, rua do
Jardim do Tabaco n.º3, rua da Regueira n.º 40,
rua das Escolas Gerais n.º 126, rua de Santa
Catarina n.º 28. Largo do Chafariz de Dentro n.º 23,
rua Sampaio Bruno n.º 25, travessa de São
José n.º 27, beco dos Toucinheiros n.º 12-A. Rua
Cidade de Rabat n.º 9, travessa do Alcaide
n.º 15-B, calçada de São Vicente n.º 12,
rua das Flores n.º 6, travessa da Espera n.º 54.

Praça das Flores n.º 5

(de Todos Contentes e Eu Também, Campo das Letras, 2000)