19.2.05
Encontro-me mais uma vez sobre as ondas, uma vez mais!
E erguem-se debaixo de mim as vagas como um corcel
que conhece o cavaleiro. Que o seu bramido seja bem-vindo!
Ah, que me guiem depressa, para qualquer lugar!
embora o mastro estremeça e se incline como um canavial
e as velas sejam impelidas, despedaçadas pelos ventos,
não posso deixar de prosseguir - porque sou uma alga
arrancada das rochas que voga sobre a escuna do Oceano
para onde a arrastam as ondas e a respiração da tempestade.
................................................................................................................
(Tradução de Fernando Guimarães, in Poesia romântica inglesa, Relógio d'Água, 1991 - original de Childe Harold's Pilgrimage, 1816)
18.2.05
Os paraísos artificiais
Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.
Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.
Os cânticos das aves - não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.
Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.
A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.
(de Pedra Filosofal, 1950)
17.2.05
7
um gato assim era quase um sítio perdido entre
o pêlo e o acordar (pequena fábula sonhada por
entre as patas) quem o enviou quis ensinar ao
mundo o sentimento da inveja. a mãe tirava da
boca para lhe dar assim mesmo o lorde mentia
na hora a que chegava das sete vidas paralelas.
um dia fugiu pela manhã o (in)g(r)ato mesmo
sem se despedir ou pagar o que levou:
a coleira nova e o guizo ....................... 150$00
duas latas de comida ............................ 395$00
um saco de areia higiénica ................... 200$00
dá notícias pedaço de deus se acordares desse
intrigante sono repousando de (qual?) cansaço
que pensas tu afinal de Ivan Petrovich Pavlov?
(de Rua Trinta e Um de Fevereiro, 1991)
16.2.05
15.2.05
A NOITE NOS ACENDE MOVIMENTOS
A noite nos acende movimentos
luminosos. E ampla se diria
ou paz, se não mover-nos
abrisse dentro da brisa.
Mas mesmo que o silêncio
nos alongue a memória e as axilas
respirem o que vemos,
a custo vemos crescerem às pupilas
os vasos de irem vendo
a inclinação das coisas esquecidas.
(de Sobre as Horas, 1963)
[fatal como eu, na Terra da Alegria de Hoje]
SÉRGIO GODINHO
CASO FATAL
É a mais pura verdade o caso que eu vou contar
quem quiser pode nem acreditar
Sé bem que, aviso já
mentiroso eu não sou
quem quiser pode ir lá ver
que eu não vou.
De mais a mais porque é
que eu havia de ir ver
o que já lá vi com estes dois
por quem sois
crêde em mim
vou contar-vos enfim
o tal caso verdadeiro:
aí vai, tim-tim por tim-tim
Verdadeiro ou não
só posso chamar-lhe atroz
este caso que me estrangula a voz
Não penseis que exagero
nem julgueis que é demais
ou que abuso de pimentas e sais
Não, bem pelo contrário
a minha musa indigente
nem sequer está à altura
e faz figura bem triste
mas bom, já que se insiste
estou disposto a revelar
no que este caso consiste
Ora bem foi assim
este caso fatal
que foi p'ra pior
depois de estar mal
Não me lembro da hora
nem se era noite ou dia
só sei que algo no ar se pressentia
E os pressentimentos
são a modos que mosquitos
a esvoaçarem no ar
esmagar dois ou três
se alivia o freguês
não anula o problema
nem o resolve de vez
Então seguiu-se o resto
do que estava p'ra vir
nem vos conto, p'ra vos não combalir
Foi um ver se te avias
um vai-vem muito louco
um toma-lá-dá-cá e fica com o troco
Teve um pouco de tudo
e foi pouco p'ro que teve
sem ter mais nem porquê
já se vê p'lo aparato
que foi de esfola-gato
este caso que no meu modesto verso relato
Bem, e agora que já
estais familiarizados
com o assunto e seus assins e assados
e que tendes presente
a complexidade
de apartar do mexerico a verdade
podereis ter ficado
com a estranha sensação
que eu nada disse, e porém...
Também muitos doutores
falam bem fazem flores
mas não dizem nada, nada
ao discursar: Meus senhores...
(do álbum Coincidências, 1983)
14.2.05
maleáveis em viadutos. Ruas
que crescem dentro dos passos sonoros
e barcos que se levantam demais
à procura de limites fechados
entre esta pressa que se faz encontro
depois das casas ainda em segredo.