15.6.13

[outros melros LXVII]

ABEL NEVES


primavera

o melro vem
deixa as cores e vai
eu fico


(de Quasi Stellar, Língua Morta, 2013)

14.6.13

EDUARDO GUERRA CARNEIRO



III

Eles buscam novelos no meio da lixeira.
No negrume do poço rasgam véus
e a poeira brilha, feita mica.
Do granito regressas, mãos vazias,
pois disseram-te que o poço já secou.
Vermelhos os novelos marcaram a sombra
onde nasciam outras borboletas.
Era a luz que buscavas, viajante,
vindo das trevas desse Inferno teu.
Os cães ladram-te à noite nas ruelas
e a encruzilhada tem pronto o feitiço.
Volta, pois, ao lixo, a essa lixeira,
monturo de sentimentos esquecidos:
as estrelas ainda brilham lá ao fundo.

Tropeças num cordel, envolves-te
no pântano. Cordões de nervos teus
assim quiseram: criar o imaginário.
Voa sobre o terreno podre que criaste
e marca um areal e claras ondas.
Os sonhos que tu julgas realidade
não passam de mentira. Tropeças
quando queres e és andorinha
riscando o céu urbano e os beirais.
Vem-me aqui às mãos, tão franciscanas!,
e enreda-te noutros sonhos.
Dou-te as possíveis asas para o voo
quando as últimas amarras desse medo
cortares como um cordão umbilical.

 

(de Lixo, &etc, 1993)
FRANCISCO DE SÁ DE MIRANDA


O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
Também mudando-m’eu fiz doutras cores:
E tudo o mais renova, isto é sem cura!

13.6.13

THOMAS McCARTHY


A CASA PROTEGE-TE

A casa protege-te como é próprio de uma casa.
Torna-se a zona exclusiva da imaginação —
mas no interior da zona há algo mais,
uma máquina blindada de rotinas
focinhando tudo. A casa nunca pára quieta:
vai a todo o vapor à tua marcha
e esmaga tudo em seu caminho.

Nada ousa opor-se à tua depressão.
Como súbditos, curvamo-nos, abrimos alas;
tornamo-nos estúpidos em mais um dia desolador.
O que eu odeio é a tua máquina não lubrificada:
O que eu contenho é a minha ira sem resposta.



 

(in O Jardim da Dor e outros poemas, tradução colectiva em mateus, Quetzal editores, 1993)

10.6.13

HENRI MICHAUX


PEQUENO

Quando me virem,
Passem ao largo,
Não sou eu.

Nos grãos de areia,
Nos grãos dos grãos,
Na farinha invisível do ar,
Num grande vácuo que se alimenta de sangue,
Aí é que eu vivo.

Oh! não tenho de que me envaidecer: Pequeno! Pequeno!
E se me apanhassem,
Fariam de mim o que quisessem.



 

 (de As Minhas Propriedades, trad. de José Carlos González, Fenda, 1999)

9.6.13



ANTÓNIO SALVADO


ODE

Que à nossa volta as coisas permanecem
impuras, ninguém o negará. Caminhos vastos
porém erguem-se audazes pela vida fora
e paralelos em sua directriz à dimensão
real do dia a dia. Caminhos
são essa voz do tempo que chamara
aqui, ali e mais além ainda. Caminhos
são essa nesga de sol que à superfície
do espírito acalenta descobertas.
— Erguidos, pois, que esta manhã permite
com sua jovem seiva o percurso
por onde havemos de correr. Afoitos,
a hora é começar. Dentro de nós existe
o verdadeiro sinal: escolhamos
a cor, que uma cor afinal
teremos de escolher.


(de Difícil Passagem, 1962)