MARIA AMÉLIA NETO
OS OLHOS DE RUY CINATTI
O sangue do lado esquerdo,
Ensopava a camisa, escorria pelos dedos.
Amparando-o, um irmão? Um amigo?
Era um irmão, rosto perdido entre rezas e disparos.
Se os olhos de Ruy Cinatti pudessem ver...
O sangue corria sempre, como o sangue da outra ferida do lado,
Não de bala, mas de lança.
Novos disparos, gritos e rezas entre os túmulos e os corpos.
Quantas matanças? Quantas noites de St. Barthélemy?
Quantas caçadas? Quantas noites de cristal? Quantos silêncios?
Entravam nus dentro dos fornos. Choravam, lutavam
Ou pediam ao gás e à Morte que viessem depressa.
E o que dizia o vulto de vestes brancas no seu vastíssimo palácio?
E o que diziam as belíssimas canções ali tão perto?
Falavam do ouro do Outono e da rosa dos bosques.
Agora o sangue corria devagar, e a ferida era do lado.
Como outra chaga antiga.
Muitos corpos arrefeciam. A Sombra estava próxima.
"É grande a colheita" - pensou.
Se os olhos de Ruy Cinatti pudessem ver...
(de Oeste, Terra dos Mortos, edições Ática, 1999)
8.3.07
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Cinatti,
Maria Amélia Neto,
Portuguesa
6.3.07
FERNANDO CORREIA PINA
Saldo Negativo
Dói muito mais arrancar um cabelo a um europeu
que amputar uma perna, a frio, a um africano.
Passa mais fome um francês com três refeições por dia
que um sudanês com um rato por semana.
É muito mais doente um alemão com gripe
que um indiano com lepra.
Sofre muito mais uma americana com caspa
que uma iraquiana sem leite para os filhos.
É mais perverso cancelar o cartão de crédito a um belga
que roubar o pão da boca a um tailandês.
É muito mais grave deitar um papel para o chão na Suíça
que queimar uma floresta inteira no Brasil.
É mais obscena a falta de papel higiénico num lar sueco
que a de água potável em dez aldeias do Sudão.
É mais inconcebível a escassez de gasolina na Holanda
que a de insulina nas Honduras.
É mais revoltante um português sem telemóvel
que um moçambicano sem livros para estudar.
É mais triste uma laranjeira seca num colonato hebreu
que a demolição de um lar na Palestina.
Traumatiza mais a falta de uma Barbie a uma menina inglesa
que a visão do assassínio dos país a um menino ugandês
e isto não são versos; isto são débitos
numa conta sem provisão do ocidente.
(de Cantos da Língua, livro/disco editado pela ACERT – Associação Cultural e Recreativa de Tondela, 2006)
Saldo Negativo
Dói muito mais arrancar um cabelo a um europeu
que amputar uma perna, a frio, a um africano.
Passa mais fome um francês com três refeições por dia
que um sudanês com um rato por semana.
É muito mais doente um alemão com gripe
que um indiano com lepra.
Sofre muito mais uma americana com caspa
que uma iraquiana sem leite para os filhos.
É mais perverso cancelar o cartão de crédito a um belga
que roubar o pão da boca a um tailandês.
É muito mais grave deitar um papel para o chão na Suíça
que queimar uma floresta inteira no Brasil.
É mais obscena a falta de papel higiénico num lar sueco
que a de água potável em dez aldeias do Sudão.
É mais inconcebível a escassez de gasolina na Holanda
que a de insulina nas Honduras.
É mais revoltante um português sem telemóvel
que um moçambicano sem livros para estudar.
É mais triste uma laranjeira seca num colonato hebreu
que a demolição de um lar na Palestina.
Traumatiza mais a falta de uma Barbie a uma menina inglesa
que a visão do assassínio dos país a um menino ugandês
e isto não são versos; isto são débitos
numa conta sem provisão do ocidente.
(de Cantos da Língua, livro/disco editado pela ACERT – Associação Cultural e Recreativa de Tondela, 2006)
4.3.07
CARLOS BESSA
ESTA QUASE HAGIOGRAFIA
Dão-se onde menos se espera, os milagres.
Os arredores estridentes onde todos
se sentam à mesma hora, olhos postos
na economia do sangue ou no luxo
com que desfraldam bandeiras e preparam
tribunais para os detalhes da carnificina.
Como se parte disso fosse o bálsamo
de que precisam para o dia seguinte.
E com os muitos modos de queimar incenso
prolongam a arte marítima da bolina,
até que são horas de deixar correr os
sonhos entre o lençol de baixo e o lençol
de cima. Ao tédio da pornografia
junta-se então o plástico das rotundas,
que circulam frenéticos e maldizentes,
enquanto as rádios debitam alegria
em jorros e os preparam para o zelo
com que se sonham elegantes e majestosos.
Os milagres, esta quase hagiografia.
(de Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007)
ESTA QUASE HAGIOGRAFIA
Dão-se onde menos se espera, os milagres.
Os arredores estridentes onde todos
se sentam à mesma hora, olhos postos
na economia do sangue ou no luxo
com que desfraldam bandeiras e preparam
tribunais para os detalhes da carnificina.
Como se parte disso fosse o bálsamo
de que precisam para o dia seguinte.
E com os muitos modos de queimar incenso
prolongam a arte marítima da bolina,
até que são horas de deixar correr os
sonhos entre o lençol de baixo e o lençol
de cima. Ao tédio da pornografia
junta-se então o plástico das rotundas,
que circulam frenéticos e maldizentes,
enquanto as rádios debitam alegria
em jorros e os preparam para o zelo
com que se sonham elegantes e majestosos.
Os milagres, esta quase hagiografia.
(de Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007)
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