10.8.06

ROSA ALICE BRANCO

DISSONÂNCIAS


O olhar não vê, se visse
da folha o mínimo detalhe era seiva e mão que acaricia
entre inúmeros corpos invisíveis
como dentes de água

o olhar não vê
por isso sou nome de árvore ou nome vegetal
na violência com que me olhas
de um centro vazio
ou do rubor imaculado da sombra
mas é com essa distância
que me aproximo das coisas
envoltas numa respiração verde

se visse, o olhar seria a perfeição
do imperfeito e doce
como vir do extremo de mim mesma
ou de uma linha que se estenda perto
e a harmonia fosse esse desajuste
que só se vê por dentro
olhos que se cerram contra os olhos
sem exterior.

(de Monadologia Breve, 1991)

9.8.06

JOSÉ JORGE LETRIA

COISAS DESMEDIDAS

De coisas desmedidas falo,
não de apocalipses nem de estrelas,
tão pouco do seu jogo mágico e incontrolável,
porque para tanto me não chega
o engenho das mãos nem a enganadora
sabedoria do olhar; estou como se estivesse
em estado precário perante as luzes
e a ilusão de espuma das marés

Os cânticos que me cercam
são os da água e do delírio das algas
rente aos segredos mansos da profundidade

Desmedido me torno a falar disto
e é assim que quero ficar

(de Corso e Partilha, Centro Cultural do Alto Minho, 1989)

8.8.06

Ah, e não esquecer também os poemas de Leopoldo Maria Panero que têm aparecido nos Dias Felizes, aparentemente também com tradução local da Cristina.
A ler (em tradução que calculo seja do próprio Luís) os poemas de Amalia Bautista, que estão a aparecer na Natureza do Mal (além de tudo o mais que por lá surge).

PEDRO SENA-LINO

[arte poética]

I.
o fundo avesso da pele
ritmo disperso das visões bebidas

o ponto inexpressivo do mistério
antes de sulcadas as costas da palavra
prosódia do cais ante o naufrágio

(há cordas que matam ao longo do corpo
e podem tanger os sortilégios brancos)


II.
as coisas pesam altura


III.
percorrer demais o ciclo quadrangular
e ver a encarnação do improvável


o espaço teclado de Deus

(tarde revelada além
Quando os lagos alunem)


Paço de Arcos, 6 de Junho de 1999


(de constelação dos antípodas, Litera Pura, 2000)

7.8.06

JOSÉ MATTOSO

(...)
Há quem pense que a investigação científica exclui a devoção e a piedade. Pela minha parte, nada me entusiasma mais do que descobrir alguém capaz de aliar a investigação objectiva, competente e metódica com a sensibilidade poética, o sentido do gratuito e do calor humano, o uso da intuição ou o encantamento pelas manifestações irracionais do homem. Custa-me admitir que tenha de se renunciar a uma coisa para ceder à outra. Não acredito numa efectiva descoberta do sentido do mundo e da vida, senão numa perspectiva de apreensão da totalidade, isto é, do dizível e do indizível, da claridade e das trevas, do crer e do saber, do ser e do estar, do viver e do morrer. Portanto, também do masculino e do feminino, do humano e do divino, do compreender e do rezar.
(...)

(excerto do texto Apresentação de uma Exposição, in Exposição Imagens de Nossa Senhora no Mosteiro dos Jerónimos, 1988)