23.4.03

I.

Nunca a virtude depende de mim;
Aceitá-la e mantê-la é agir bem;
Não sou eu que a crio, nem é coisa minha;
Depende de mim deixá-la crescer;
Não a compreendo, mas preciso dela
P’ra ser a verdade daquilo que sou;
A virtude aceita todo o meu defeito,
Pois serve-se dele para ser virtude;
E encontra lugar no sítio mais fundo
Enchendo afinal toda a minha vida.


II.

Ouve bem: também com o corpo se ama
Contempla a beleza e alegra o teu dia.
Mas se o coração não pede silêncio
Não sabe onde vai e apesar da fome
Entra na ausência de ser só p’ra si
E entrega-se cego ao que não conhece.
Quando se afastar alivia a ânsia,
Descobre a presença na intimidade.
P’lo amor o corpo chegará ao corpo
Vivendo prazer p’ra além do momento


III.

dez pecadinhos mortais ao acaso

Suavíssimos pretextos para nada;
O medo de ouvir falar o vento;
O avanço das armas escondidas;
Os tesouros perdidos frontalmente;
Sinceridades sem razão de ser;
A violência de conter o murro;
Segredos que se dizem sem ouvidos;
Os silêncios que mascaram as sombras;
O vil excesso de um pão sem fome;
As palavras escritas com maiúsculas.


IV.

«Um caminho de areia solta», disse
O poeta e chamou pátria ao poema
Pois «pátria é só a língua em que me digo».
A memória é uma questão de nós próprios;
O tempo consolida o que lembrarmos,
Desvanece e distorce as subtilezas
Dos caminhos da vida e a pátria
Sucede constante apesar do tempo
E é apenas «um caminho de areia
solta conduzindo a parte nenhuma»


V.

Cada sílaba um toque no chão
Esse soneto alimentado a fogo
Forjado por dedos cheios de vigor
Bafo de calor na dura poesia
Quadras e tercetos sem erro de peso
– Males de coração tão descontrolados,
Pedras tão diferentes nesta construção –
Que é fúria de dor e suave alegria
Ou tristeza incerta e força de vento,
Mas é sempre vida crescendo apesar


VI.

O sigilo é uma sombra do poder
– Retrato frio dum silêncio calado –,
O oposto do que não pode ser dito.
O sigilo é medo que o outro me oiça
E que a minha voz toque no silêncio.
Fronteira de nada que se torna espuma
O sigilo é pôr o sonho de lado
Numa rua escura faltando ao respeito
Sem pedir perdão por não ter amor.
O sigilo mata sem saber porquê


VII.

Vejo o mundo que se move por dentro
No contorno dos dias que ocultam
As razões da alegria e da tristeza;
Lembro o medo de não acreditar
Que aqui chegar é sinal de vida;
Acredito no amor posto em prática,
Na terra a arder e no rosto sem medo;
Sei dos horizontes largos de saúde,
Das nuvens a anunciar trovoada
Amando a glória que se manifesta


VIII.

Figura branca no caminho andando
Por trás verticais sucessivas árvores
E o passo de quem se atreve sereno
A olhar o chão e os olhos em frente
De um outro que está esperando por ele
Figura branca segue no caminho
O cansaço só se mede no fim
Por enquanto o chão vai-se percorrendo
Com a lenta calma de quem quer chegar
Ao local mais puro: o próximo passo


IX.

A secura dos teus olhos enjoa,
É cegueira pior do que não ver,
É uma pálpebra sem luz por dentro,
Uma visão débil de não saber nada.
Quem dera um dia o gesto de abrir
Te deite p’ra fora em jeito de lágrima
Essa voz que te cala amedrontada,
Língua fraca sem boca sem sabor,
Pois no cerco do mundo, sabes bem,
A força dos teus medos é fatal.


X.

O homem despreza a sua própria morte,
Tenta-se esconder em sinais de alívio,
Procura vestígios da sua alegria,
Foge do espanto dos dias contados
Que trazem a sede de saber esperar
E que dá a água na sabedoria,
No entanto foge sem ter para onde,
Lava-se no lodo pensando que é céu,
Segue sem destino buscando consolo
Sem saber que está fugindo da vida.



no poema IV
o que está entre aspas pertence ao poema pátria de Rui Knopfli e está incluído no livro O Escriba Acocorado.