JOÃO CAMILO
OS POETAS SÃO SERES DOENTESMuitas vezes os poetas confundiram a poesia
com a arte de cantar. E outras vezes
procuraram dolorosamente um ritmo digno das histórias
da literatura, esses monumentos ao tédio.
A rapariga que atravessava a rua à sombra dos plátanos
com a simplicidade inquietante da sua beleza fê-los sofrer,
mas em vez de falar do segredo eterno das suas pernas
e do perfil pesado dos seus seios nus debaixo da camisa aberta
esforçaram-se por esconder a perturbação e o pressentimento da morte
no castelo de mármore barroco dos símbolos e das metáforas.
Para aquele que não sabe olhar todas as tardes são a mesma tarde
e para quem não sabe ouvir todos os sons se assemelham ao ruído.
As pessoas passavam. Homens e mulheres que não iam a lado nenhum
e no entanto concentravam o espírito cheio de perguntas
nas pedras amarelas do passeio. Rapazes e raparigas
sentavam-se nas esplanadas dos cafés. Tinham os olhos
tão limpos. Neles podia reflectir-se
o universo inteiro e observando-os de longe
adivinhava-se que as palavras com que tentamos orientar-nos
no nevoeiro da existência são todas excessivas e até erradas.
E no entanto eles ignoravam as árvores e as casas, só sabiam
olhar para si mesmos. Como se um lume oculto
os subjugasse e faziam pensar na borboleta que queima as asas
na claridade brutal da lâmpada eléctrica. A tarde avançava.
Os poetas são seres doentes e têm medo da vida. Sem fim
apagam as luzes para que o quarto fique às escuras. As coisas
ferem-nos, pesam-lhes excessivamente no espírito. E eles preferem
a espessura protectora das sombras. É tão injusto ter de viver
para além da infância e da adolescência. Mas pelas persianas de madeira
o ar e a música da rua não cessam de querer entrar. E de longe
as montanhas e os rios enviam o cheiro de arbustos, de pinheiros.
Para resistir os poetas começam a cantar. Ou enterram debaixo das palavras
a violência demasiado quotidiana, excessivamente selvagem do mundo.
REALIDADEJá não sei por que razão
escrevi o meu primeiro poema.
Os sentimentos «delicados» alguma vez me interessaram?
Nem eles nem a «beleza», verdadeiramente.
Foi por isso talvez que uma tarde me sentei num banco
e enchi a primeira página de palavras.
O sentimento poético no meu caso não é
exactamente o sentimento poético no caso dos outros.
Mas nesse tempo eu ainda não tinha aprendido
a respirar segundo o meu próprio ritmo.
Toda a gente viu o que fez um dos irmãos Marx
à roupa que ficou de fora da mala fechada:
pegou na tesoura e cortou-a.
Ou era o Charlie Chaplin e estou a confundir?
Todo o meu esforço tem consistido
em fazer entrar na mala o que lá não cabia.
Realidade, o máximo de realidade que for possível,
tem sido a ideia que me tem guiado.
E nada de comover-se com as palavras,
opor-se sem piedade aos desejos que elas têm
de ser aristocratas entre a plebe anónima da frase.
Tratei-as a todas segundo o princípio da igualdade,
em todo o caso esforcei-me por isso.
Não nego que tenho tido preferências e obsessões;
mas a privilegiada de um verso confunde-se
no seguinte com a sua sombra na parede.
A sociedade deve-me muita coisa e eu devia-lhe isto:
estar-me nas tintas para as suas estátuas,
para o oiro e a prata que ela distribui.
Não me ajoelharei diante de altar nenhum.
Quanto às palavras, trato-as como o domesticador
ao tigre e ao leão que depois do espectáculo
regressam humildemente às grades da jaula.
Escrever poesia é a minha maneira de participar
na luta das classes.
A tentação da beleza e os sentimentos delicados afogo-os
na velocidade do verso democraticamente longo.
E o «transporte» permite-me viajar de um verso
para o seguinte sem perder de vista a luz
ao fundo do túnel. Um subterfúgio ainda, evidentemente,
para meter dentro da mala pequena
o excesso de roupa que apesar de tudo possuo.
A César o que é de César e a cada palavra
o papel que é o seu. Se alguma
tem de brilhar, que brilhe; mas não contem
comigo para me prostrar aos seus pés embevecido.
De qualquer modo poucas ou nenhuma valem o bastante
para ocupar sozinhas o pedestal do verso inteiro.
Penso estas coisas e convenço-me
de que tenho vindo a abrir caminho com a proa
do barco da minha pouca ou nenhuma estima
pelos sentimentos dos que nos oprimem.
Há dias, porém, não li em Theodor Adorno
que o artista se confronta simultaneamente
aos materiais da sua arte e à sociedade?
Não escrevemos o que queremos escrever,
não cantamos o que nos apetece cantar;
escrevemos e cantamos as palavras e a música
que a sociedade, insidiosa, deixou ao nosso alcance.
Do estilo e da sintaxe é ela que decide.
É provável que eu não o ignorasse;
mas fiquei um pouco desiludido.
A liberdade que eu pensava que tinha conquistado
era apenas aquela que me tinham imposto.
Perdera tempo a reflectir e a lutar por ela,
exercitara-me em estratégias e manhas subtis;
mas em vez de alargar os limites da experiência,
tinha ficado no mesmo sítio a marcar passo.
Tudo estava previsto de antemão. Riam-se de mim:
não pus no papel o que senti, não disse o que pensava,
não me opus tanto como o imaginava
à ditadura de tudo o que não sou;
só falei daquilo de que podia falar
E o censor não era eu? Queria que me lessem.
Devo ter esperado que me amassem pelo que escrevia.
E não tive asas, limitei-me
a andar de gatas à volta da mesa
a que tinha presa a perna com um cordel.
Se é verdade que lutei contra o desejo
que tem as palavras de se lhes dar importância,
não posso negar que me servi da tesoira salvadora:
borracha que apaga o que não cabia na página do caderno,
cortina que esconde o que não fazia parte do cenário.
Ter preferido o país democrático da frase
à monarquia absoluta da palavra
não pôde livrar-me dessa insuficiência.
Este poema, pelo menos, podia ser o início de outra era.
Mas calha mal. Já passa das duas da manhã
e arrefecem-me os ossos na sala onde entra o vento.
Além disso, antes de ser definitivamente mal-educado
tenho de dar algumas provas mais de respeito e consideração.
É por isso que o poema vai terminar aqui:
o poeta, coitado, está cheio de sono,
tem a cabeça baralhada por causa do Theodor Adorno
e raciocinará mais tarde sobre a essência da poesia.
(de
A Mala dos Marx Brothers, editorial Caminho, 1988)