6.4.07

CARLOS NEJAR

LIVRO DA TERRA E DOS HOMENS - 6


Os homens eram sombrios,
esfinges de solidão.

Os homens eram sombrios,
quiseram tecer de sonhos
a água verde dos rios.

Os homens eram amargos,
quiseram compor o cisne
nas águas verdes dos lagos.

Os homens eram ardentes
como tochas de amaranto;
sobre o rosto do poente
deixaram rosas de pranto.

Os homens eram calados,
torres de vazio.

Eram terríveis, terríveis
contra o céu de esquecimento;
lançavam gumes de fogo
e adormeciam no vento.

Os homens eram de vento
(de um vento predestinado);
braços de ferro no tempo,
entre o presente e o passado.

Os homens eram profundos
na superfície das cousas
e ali ficavam no mundo
dos rosalábios e rosas.

Os homens eram ferozes
como estrelas de ambição;
mas no tempo-primavera,
se primavera chegasse,
eram brandos como espuma,
eram virgens como espada;
eram suaves, suaves
como aves de abandono.

Os homens eram de estrela,
soprando sobre o canal;
não era estrela de noite,
mas estrela de metal.

Os homens eram de estrela
e não podiam sustê-la.

Os homens eram de treva,
fizeram-se escravos dela.

Os homens eram remotos
no grande túnel de pedra.

Nem alga, nem alfazema,
nem junco, nem girassol,

floração ali não medra,
longe da terra do sol.

Floração ali não medra;
tudo o que nasce é de pedra.

O homem nasceu do vento
mas sepultou-se na pedra.

O tempo nasceu do homem
mas o homem não é pedra.

O tempo formou-se pedra
na eternidade de pedra.

Um sol compreendeu o homem;
era fogoso e de pedra.

Menino não como os outros,
menino feito de pedra.

Braços, só braços e mãos
na madrugada de pedra.

Os homem donde vieram,
se o seu destino é de pedra?

Que procuravam os homens
na eternidade de pedra?

Eram hálitos de aurora,
luz florescendo caverna?

Eram só pedra.

Talvez fonte, vento vento,
folhagem sobre montanha,
cintilações, pensamento?

Eram só pedra.

Talvez crianças relâmpagos,
Paredes de som, cantigas?

Eram só pedra.

Rostos ocultos no sono,
barcos de ânsia, velame?

Eram só pedra.

Talvez carícia, sossego,
desejo de despertar?

Eram só pedra de pedra.
Os deuses eram de pedra,
os homens eram de pedra
na eternidade da pedra.

Pedra de aurora mas pedra.
os homens eram pedras.

Lábios de pedra mas pedra
os homens eram pedras.

Ventre de pedra mas pedra,
os homens eram pedras.

Noite de pedra mas pedra,
os homens eram pedras,
os homens eram pedras,
os homens eram as pedras.

Eram as pedras, as pedras,
eram as pedras.

(de Livro de Silbion, 1963 - in Dois Poetas Novos do Brasil, Moraes editores, 1972 – Círculo de Poesia)

2.4.07

RUI BAIÃO

Rácica chita cante
o fado morno da pedreira,
meta a língua no saco de trapo,
remolhe onde não haja quem raciocine.
Saudade ao lado do escalpe de escabeche.
Toranjas, citrinos sugados pela muito putacátia
andreia. Se não fosse o trôpego hino da azáfama,
seria a reviravolta dos mais vândalos. Sorna vírica
à rua do século. Haveria de ser cigana
leviana lituana, mendiga serrana com a tia
do samouco à lapa, à perna:
à tabla, a pimba democracia
dos rasos, pouco dada a emoções;
à viola, a violada retornada do bié,
às voltas com camisas e raspadinhas;
às pandeiretas, coirão, ranheta e pokémon;
aos guizos & chocalhos, o olhar trémulo
bovinamente humano e parlamentar dos jovens
jeovás. Um fósforo em lata étnica
é um bairro periférico que a narrativa
inveja não incendiar. Cantando e rindo,
a nova bufa de laca longa, esfaqueia white
horse amarrado pelos pés ao berço
do amordaçado rapper horse power.

(de Nuez, em co-autoria com Paulo Nozolino, Frenesi, 2003)

1.4.07

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

6


A árvore. De novo a passagem de
uma árvore a outra árvore.
Foi a árvore que deu lugar a esta árvore
o calmo reino da lei tombando do tempo, da árvore
ou de outra coisa assim: memória de dizer a aparente
árvore.

Um elemento de força. O facto de dispor
grande quantidade de folhas ramos troncos ou raiz.
Esta história reunida começou há muito
sobre esta linha.

Árvores foram preenchidas por círculos
árvores recebendo afluentes - ramos desenhados nas
lajes brancas, caminho que não está inteiramente terminado
a árvore voltarei a falar. Sem mediação.
Resta o estranho desenho de ramos
pequenos ramos.

(de Direito de Mentir, 1978)
[outros melros XLV]

FERNANDO GRADE

"OS MELROS AZUIS SÓ CHEGAM AMANHÃ"


(...) Ferreira (chamo-lhe assim, por uma questão de pudor), era um contumaz vendedor de pássaros, mormente melros - sua especialidade -, para os quais utilizava um reclamo sui generis:
"Olhem bem esta maravilha!!! São os melros mais bonitos do mundo!!! Ainda mais bonitos que os melros azuis que vendi ontem..."
A verdade é que o Ferreira estava convencido do que afirmava. Tinha os olhos atravessados por uma névoa... Desregulava..., a espaços. E os passantes faziam chacota.
- Oh senhor Ferreira - metia-se um rapazola na conversa satírica -, quais deles é que são mais azuis, as mélroas ou os melros?
À volta, a matula ria. Os melros são sempre pretos, a plumagem negra, como o pássaro dentirrostro de que fala o poeta Abílio Guerra Junqueiro. Eternamente pretos, de carvão, e com o bico amarelo vivaz, aqueles melros azuis do Ferreira eram bons acicates para a hilaridade das pessoas, e davam a medida de alguma loucura mansa que circulava no sangue do vendilhão de pássaros...
Muitos anos a fio, não soube patavina do bom Ferreira. Teria morrido? Uma destas tardes - que espanto! -, defronte da igreja da Memória... ecce homo! Era ele em carne e osso, terrivelmente mais velho, as três gaiolas do costume, e mais escalavradas, e, dentro, melros melros, negríssimos de dorso, o bico da cor dos limões... Olho para a paisagem ao redor, e tremo. Sim, foi ali mesmo que os Távoras, ou alguém por eles, ou outros que a História camuflou, desferiam arcabuzadas sobre o rei José, e não o liquidaram. O rei galaró vinha da cama da amante, e...
Entretanto, o Ferreira grita:
Venham ver, venham ver, estes são os melros mais bonitos do mundo!!!...
O nosso herói encontra-se naquele sítio histórico; sem o saber, está fora do tempo, desconhece, porventura, que a igreja foi mandada erigir pelo Marquês, em acção de graças pelo facto de o rei dos Braganças não ter sido fuzilado na emboscada. Observo melhor: ao pé das três gaiolas com melros, o Ferreira colocou uma cadela cheia de carraças, bicho gordo, fedorento. O pêlo esparramado de cebo e porcarias diversas. Junto dos melros canoros, a cadela tetuda e nauseabunda constitui um quadro confrangedor: trata-se de o óptimo e o reles baixo. (...)
Reparo no incomum, os seus olhos de louco a haver, recordo-me que os ossos do Marquês de Pombal se encontram enterrados naquela igreja, e arremesso aos céus manchados de muitos pântanos...
- Oh meu bom Ferreira, então não tem melros azuis para vender! pergunto-lhe, como se o tivesse visto pela última vez há quinze dias.
O homem responde, responde sempre, os olhos lívidos de pedra:
- Os melros azuis só chegam amanhã.

(excerto de crónica incluída em O Bairro Cercado, Universitária editora, 1998)