DINIS MACHADO
Qual é o lado cómico disto?Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e confrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado cómico disto? Daí a fazer a pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica - até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu: qual é o lado cómico disto?
(...)
Quando a infância começou a ser perturbada por desentendimentos mais amplos com o real, insisti na defesa da minha alegria, do meu prazer de viver. E até na dor que retirava dos que amava (dos meus avós, das minhas velhas tias, por exemplo), e até na morte, que sempre me surpreendia, protegia-me com essa frase defensiva, essa armadura de sol, de chuva e de subir a escada a quatro e quatro.
Creio que os cómicos do cinema me compreendiam melhor do que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura, o corpo de borracha e a paciência evangélica dos grandes missionários da naturalidade.
(excerto de
Reduto Quase Final, Bertrand editora, 1989)