24.3.06

ALBRECHT DÜRER


Cristo entre os doutores, 1506
Óleo sobre madeira
64,3 x 80,3 cm
Madrid, Colecção Thyssen-Bornemisza


FERNANDO GUIMARÃES

DÜRER: "CRISTO ENTRE OS DOUTORES"
(DA COLECÇÃO THYSSEN-BORNEMISZA)

No meio estão representadas quatro mãos. Formam um quadrado. Qualquer
gesto há-de ocultar-se nelas. Este só pertence a quem as veio
pintar; elas são a moldura dessa ausência. Conservam-se juntas
e entreabertas. O espírito de quem ali se encontra procura
um novo conhecimento. Há mesmo alguns livros e uma luz desconhecida
principiou a iluminá-los. Numa das mãos de Cristo descai o indicador
até ao polegar da outra e vê-se à sua volta espalhado o reflexo
desse movimento sobre um manto que é verde. As outras duas
são as de alguém que nesses livros há-de encontrar uma nova pergunta
para depois se receber o seu mistério. Como se víssemos
em páginas diferentes o que nos podia ser explicado, o rosto de Cristo
inclina-se um pouco e fita as quatro mãos. Elas são a resposta.

(de Na Voz de um Nome, Roma editora, 2006)


23.3.06

[para uma antologia de bicicletas - 4]

NUNO ARTUR SILVA

SENTIDO


Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Aqui vou eu a pedalar sempre a bicicleta
pela estrada a atravessar a floresta a atravessar
o sonho e a luz do sol por entre as árvores

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Estou para além de mim é infindável
o horizonte entra pela memória dentro
o vento é inexplicável o vento

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Pode ser que eu me despiste e fique
imóvel a bicicleta no chão de roda
para o ar a rodar sempre ou pode ser
que eu não pare nunca pode ser que
não fique nada senão a própria velocidade

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Uma borboleta atravessa o olhar
Uma borboleta?

Tschk. . . hiiiii. . . schkSCHKTRAPTPOUGHTTT!!!
tschksssssssssssss

(de Onde o olhar, Indício, 1986)

19.3.06

ROBINSON JEFFERS

O FALCÃO CRUEL


Contemplar seria santa vida,
mantida a sério só
as órbitas de um crânio deserto
bebendo o sol,
demasiado intenso para a carne, apenas
exultações de secos ossos;
E a pura acção seria santa vida, se subtil
entre a goela e a navalha.
O homem que soubesse a morte de cor
é o homem para tal vida.
Em feliz paz, em segurança
quão de súbito a alma no homem começa a morrer.
E ele erguerá os olhos para lá do boi no estábulo,
invejando o cruel falcão,
e sob a palha procurará a pedra
com que magoar-se.

(trad. de Jorge de Sena, in Perspectivas dos Estados Unidos - as artes e as letras, Portugália editora, s. d. - Antologias Universais)