10.4.10

MARíA VITORIA ATENCIA


FAROL


Cabo de S. Vicente

Definem-me espelhos trazidos de bem longe,
madeira imputrescível e bronze e tantas horas
de solidão, detrás desta umbela que se abre no limite da arriba;
a lampejos adormecida, morta, hirta,
eu mesma mar adentro, minha vigia e meu mar.


LEMBRANÇAS

Em algum lugar seu, pessoal e distante,
ocultam as imagens seu diário sentido a que mal chego,
e acuso-me de usar cada vez, ao dizer-me,
idênticos silêncios quebrados contra minha alma,
embora na noite escura ainda me acompanhem,
me acalmem ou rejeitem, sosseguem ou aflijam,
me penetrem no exacto coração de sua história
e me afastem do uso natural da lembrança.


FERIDA

Quando um signo adverso em mim se instala e me enche
de vazio, corrente vida acima prossigo, o coração aberto
— e sua fábrica antiga — a uma ferida de névoa
em minha porção humana encomendada,
para tornar em estilhas o córtice de um vento
que em seu punho me abafa. Ninguém demora nada
já passado. São só as trevas que voltam
e se afastam a fugir, deixando chaga idêntica
após cada regresso. E eu gostaria, às vezes,
de ficar para sempre entre os caniços.


VIAGEM

Não sabemos sequer o que somos, mas isso
conduz-nos: continuam a andar nossos comboios.
Passa outra composição pelo carril oposto
e não há nenhum adeus, fingindo-nos os mesmos;
os mesmos, e seguindo, sabendo sem surpresa
nem memória. Outra vez a estação e outra vez a sineta.
Volta a arrancar a tarde e mascarra-nos seu fumo.


A CAMINHADA

Éramos gente afeita ao dom da mansidão
e à vaga lembrança de um caminho para um sítio.
E ninguém deu a ordem. — Quem saberia seu instante? -
Mas todos, ao mesmo tempo e em silêncio, deixámos
o abrigo habitual, o lume aceso que enfim se apagaria,
as ferramentas dóceis pelo contacto com as mãos,
o cereal crescido, as palavras a meio, a água a derramar-se.
Sinal nenhum chegou. Pusemos-nos de pé.
Não voltámos o rosto. Começámos a andar.


(in Antologia Poética, tradução de José Bento, Assírio & Alvim, 2000 - documenta poetica / original de La Pared Contigua, 1989)

9.4.10

ÁNGEL CRESPO


A opressão do poema


Quem pode suportar a opressão do poema
quando nos atormenta reclamando
o nosso que nele há, o que em nós mesmos
é seu — e nos derrota?

Porque distinguir é impossível
esse instante que não é dia nem noite,
ou saber o momento em que se esquece
o céu de uma tarde, ou se deixa de amar
— porque todo o limite não sabemos.

Como recuperar o que foi nosso
graças ao acto de entregá-lo? Como
restituir um voo de ave?

Do seu e do nosso se levanta,
após queimar-nos, o fogo do poema
— ele vem, já sem palavras, acusar-nos.


(in A Realidade Inteira - Poemas escolhidos (1949-1990), Selecção e Tradução de José Bento, editorial Teorema, 1995 / original de El ave en su aire, 1985)

8.4.10

[a propósito de novíssimos...]


PAI SOARES DE TAVEIRÓS

No mundo non me sei parelha,
mentre me for como me vai,
ca já moiro por vós e ai,
mia senhor branca e vermelha!...
Queredes que vos retraia?
Quando vos eu vi en saia,
mao dia me levantei
que vos enton non vi fea!

E, mia senhor [branqu' e vermelha],
mi foi mal dês aquel di', ai!
E vós, filha de Don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d' aver eu por vós guarvaia?
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós ouve nen ei
valia dua correa.

_____________________

É o texto poético mais antigo da língua portuguesa. Não se lhe pode fixar precisamente a data; mas tem-se-lhe atribuído com aceitáveis fundamentos as datas de 1189, 1198 e 1206. A primeira data, 1189, é a mais geralmente adoptada. Seu autor, Pai Soares de Taveirós, vivia no tempo de Sancho I e dirige na cantiga os seus louvores à filha de D. Pai Moniz, a formosa Maria Pais Ribeiro, amiga do rei português. É natural que o cantar tivesse sido composto antes das relações do rei com a «Ribeirinha», cuja formosura deu tanto que falar, no tempo. O poeta, em penhor do seu afecto, pede-lhe uma prenda — uma guarvaia. Estas prendas dadas pelos namorados chamavam-se dõas.

parelha - Igual.
que vos retraia - Que vos pinte, que descreva as vossas graças, denunciando-vos. O trovador era obrigado a guardar segredo. Contudo, na estrofe seguinte levanta uma ponta do véu, mencionando-lhe o pai.
mao [mau] - A palavra mao tinha ainda duas sílabas.
semelha - Parece.
guarvaia - Sobreveste de luxo, ao que parece de escarlata. e veste de vestuário só própria de senhores de muito alta condição.

(in Crestomatia Arcaica, selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa, sem indicação de editor, 1940)

7.4.10

WENCESLAU DE MORAES

A BELEZA DAS PEDRAS


Os Japoneses, admiradores por excelência de todos os aspectos da criação, mesmo nos seus detalhes mais miúdos, revelam um gosto estético supremo para ajuizarem da beleza de um pedra, pequena ou grande, pois são de somenos importância as dimensões.
Apresenta-se, mostra-se a um japonês um pedregulho. Olha-o, fita-o, estuda-o. Para ele, o pedregulho tem feições, fisionomia individual, implicando a ideia de atributos sentimentais, pois há pedras tristes, pois há pedras sorridentes, pois há pedras amigas, pois há pedras arrogantes: cada pedra tem o seu carácter, talvez pudesse dizer: — a sua alma. — Pois nada disto escapa ao japonês, no seu exame do exemplar que tem em vista. Se convém dar colocação ao pedregulho, seja na sala de visitas, sobre uma prancha de charão, seja no chão de um jardim, entre plantas, não hesitará o japonês em distinguir-lhe a face anterior, e a face posterior, e a parte superior e a parte inferior, não cometendo a irreverência de pousá-lo numa posição ridícula, ou inconveniente, ou contrária às leis da estética, de cabeça para baixo, e pernas para o ar, por exemplo... se a frase aqui é permitida, tratando-se de um pedaço de rocha bruta, ao qual nós, loiros da Europa, não concedemos o direito de ter cabeça e de ter pés. No entretanto, entre japoneses, as coisas passam-se de uma maneira diferente.

(O Bon-Odori em Tokushima, 71-72.)

(in Antologias Universais: Wenceslau de Moraes, Selecção de textos e introdução de Armando Martins Janeira, Portugália editora, 1971)

6.4.10

ZBIGNIEW HERBERT


FÁBULA


O poeta imita a voz dos pássaros
estende o longo pescoço
a maça de Adão saliente
é como um dedo sem graça numa asa de melodia

quando canta acredita profundamente
que adia o crepúsculo
o calor do seu canto depende disso
assim como a pureza das suas notas mais agudas

o poeta imita o sono das pedras
a cabeça encolhida entre os ombros
é como uma peça de escultura
respira rara e dolorosamente
quando acordado acredita que sozinho
conseguirá penetrar o mistério da existência
e levar sem a ajuda de teólogos
a eternidade à sua boca ávida

que seria do mundo
se não estivesse cheio com
a incessante agitação do poeta
entre os pássaros e as pedras


(de Escolhido pelas Estrelas - antologia poética, tradução de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, 2009 - documenta poetica)

5.4.10

NEZAHUALCÓYOTL DE TEZCOCO


CANTO DA PRIMAVERA


Na casa das pinturas
começa a cantar,
ensaia o canto,
derrama flores,
alegra o canto.

Ressoa o canto,
os guizos fazem-se ouvir,
a eles respondem
os nossos guizos floridos.
Derrama flores,
alegra o canto.

Sobre as flores canta
o belo faisão,
o seu canto desdobra-se
no interior das águas.
A ele respondem
vários pássaros vermelhos,
o formoso pássaro vermelho
belamente canta.

Livro de pinturas é o teu coração,
vieste cantar,
fazes ressoar os teus tambores,
tu és o cantor.
No interior da casa da Primavera,
alegras as gentes.

Tu apenas ofereces
flores que embriagam,
flores preciosas.
Tu és o cantor.
No interior da casa da Primavera,
alegras as gentes.


(in Quinze Poetas Aztecas (antologia poética), tradução de José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, 2006 - documenta poetica)

4.4.10

DANIEL FARIA


Vimos a pedra vazia no interior da terra
A manhã. Nós não tocámos a luz
Inesperada. Pensámos
Que já o sono sendo eterno te afastara
E que farol que foste
Agora onda após onda, brasa extinta, naufragava

Nunca mais, pensámos, dormirias na proa
E quase desaprendêramos a guiar o barco
Em nossas viagens não amainaria mais, pensámos, e chegar a casa
Seria ver multiplicar-se
A nossa fome como o peixe e como o pão

Chegámos a terra porém e esperavas-nos
Os pés furados como conchas sobre a areia
E sentámo-nos em redor para comer


(de Dos Líquidos, Fundação Manuel Leão, 2000)