14.12.18

[outros melros LXX]


LUÍS FILIPE JOÃO


(Mas) O que é um melro?

É uma ave, veste negro fulvo
e bico loiro.
(não gosta do amarelo
como toda a gente.)

Saltita no Outono
em seio úbere ou carvão
incandescente.

Enjeita ninho
não inocente.

É poeta: alimenta ofício
de ave bem atenta.

(de Chocolate em Repouso, Átrio, 1994)

7.11.18

MANUEL GUSMÃO


Carlos de Oliveira pertence a uma tradição que na modernidade é a da autoconsciência do trabalho poiético da forma.  Entretanto, esse trabalho não é praticado nem imaginado como um simples labor construtivo, mecânico ou mecanizável, todo método e cálculo. Esse trabalho inclui a preparação paciente de uma «pequenina explosão»; inclui a espera, a passividade disponível, o acontecimento imprevisível. Como o mostrou convincentemente Gustavo Rubim, esse trabalho «desfaz a oposição entre o cálculo e o acontecimento».
Há a este propósito uma longa tradição que pensa de forma dualista a poesia e as poéticas. Haveria num pólo o poeta «voyant», inspirado, possuído ou órfico (a matriz está em Platão) e, num outro pólo, o poeta «artiste», artífice, premeditado ou hermético (a matriz estaria agora em Aristóteles). De um lado, a inspiração, a força, a «chama», a energueia e, do outro, o cálculo, a forma, o «cristal», o ergon. A oposição não é de todo inverosímil, nem inútil, é possível vê-la como um particular sintoma da dificuldade de pensar uma identidade essencial e a-histórica do que seria a poesia. Mas Carlos de Oliveira é precisamente um daqueles que mostra como o dualismo rígido dessa bipolaridade pode deixar de funcionar: a sua obra é a de um artesão afectado pela paixão.


(excerto de «A Arte da Poesia em Carlos de Oliveira», in Neo-Realismo — Uma Poética do Testemunho (alguns exercícios de releitura), Edições Avante​, 2018)

28.10.18


CECÍLIA MEIRELES


CENÁRIO

No jardim que foi de Gonzaga,
a pedra é triste, a flor é débil,
há na luz uma cor amarga.
Os espinhos selvagens crescem,
única sorte destas árvores
destituídas de primavera,
secas, na seca terra ingrata,
que é uma cinza de inúteis ervas
solta sob os pés de quem passa.

No jardim que foi de Gonzaga,
oscila o candeeiro sem lume,
apodrece a fonte sem água.
Longas aranhas fulvinegras
flutuam nas moles alfombras
do antípoda universo aéreo.

Um flácido silêncio adeja
sobre esses restos de uma história
de sonho, amor, prisões, seqüestros,
degredos, morte, acabamento…

Vagas mulheres sem notícias,
pobres meninos inocentes
circulam por essas escadas,
pisam as folhas secas, mostram
portas de anil desmoronado…

A névoa que enche os aposentos
não vem do dia nem da noite:
vem da cegueira: ninguém sente
o ranger da pena, na sombra,
o luzir da seda das véstias,
à luz de altos caules de cera…

Ninguém vê nenhum livro aberto.
Ninguém vê mão nenhuma erguida,
com fios de ouro sobre o mundo,
para um bordado sem destino,
improvável e incompreensível
remate do fátuo vestido…

Apenas um cacho de rosas,
que nascem pálidas e murchas,
habita um desvão solitário,
quer falar, porque veio a custo
de antigas lágrimas guardadas
num chão sem ouro nem diamantes…

Mas inclina-se à tarde, ao vento,
e como um rosto humano morre,
sem dizer nada, inerme e triste,
ao peso do seu pensamento,
– como acontece entre os amantes.


(de Romanceiro da Inconfidência, 1953)

19.9.18

MENDES DE CARVALHO


CANTIGA DO POBREDIABISMO DE CAFÉ


Intelectuais reconhecidos pelo notário
poetas muitos reconhecidos pela família
romancistas traduzidos lá fora cá pra dentro
o dr. bastante burro que faz mal às musas
o escultor que tacteia a senhora escultural
o ensaísta amigo das poetisas lusas
o crítico ficheiral arrumado responsável
irresponsável vespertinamente às quintas-feiras
a viúva abundante devoradora de miúdas
pequenas com muito jeito pró teatro e tudo
mancebos beija aqui beija ali beija acolá e nada
o tatebitatismo do senhor que foi ministro
o fotógrafo de arte que tem dentes postiços
a postiça menina que se atira à dentadura
o profissional contador de anedotas
e a anedota que se conta da esposa
a antiga casta susana entre os velhos
os velhinhos entre a vida e a morte
os artistas suburbanos da amadora
antologistas do verso erótico dos amigos
o declamador nortenho de pronúncia ainda lá
três inventores e meio da filosofia nacional
muitos pintores que chateiam as paredes
muitos senhores que teimam tinta e papel

e se houvesse justiça tinham pena capital


(de Cantigas de Amor & Maldizer, 1966)

2.9.18


PAUL ELUARD


A AURORA DISSOLVE OS MONSTROS

Ignoravam
que a beleza do homem é maior do que o homem

Viviam para pensar pensavam para se calarem
Viviam para morrer eram inúteis
Ocultavam a sua inocência na morte

Tinham posto em ordem
sob o nome de riqueza
sua miséria sua bem-amada

Mastigavam flores e sorrisos
Só encontravam um coração na ponta das carabinas

Não percebiam a injúria dos pobres
Dos pobres amanhã sem problemas

Sonhos sem sol tornavam-nos eternos
Mas para que a nuvem se transformasse em lama
Desciam deixavam de fazer frente ao céu

A noite do seu reino a sua morte a sua bela sombra miséria
Miséria para os outros

Esqueceremos estes inimigos indiferentes
Em breve uma multidão
Repetirá baixinho a chama clara
A chama para nós dois unicamente paciência
Para nós dois em toda a parte o beijo dos vivos.


(in Algumas das Palavras, traduções de António Ramos Rosa e Luiza Neto Jorge, Publicações Dom Quixote, 1969 / original de Le lit la table, 1944)

19.8.18


MÁRIO AVELAR


APRIL LOVE – ARTHUR HUGHES

a José Tolentino Mendonça

Esmagado ainda pelo peso
da cor, da mancha sufocando o espaço
sobre Saulo… a conversão, como
Caravaggio a concebeu… absorto,
no meu rumo íntimo
para Damasco, regressava
de Santa Maria del Popolo, pela
Via del Corso, quando a voz
De um anjo me interpelou…
a mim, apenas a mim, nos versos
do meu amigo Francesco:

E qualcosa rimane,
fra le pagine chiare,
fra le pagine scure.

Seria o seu rosto como
o céu de abril?

Dela retive apenas
a silhueta sentada
numa cadeira de rodas.

Revi-a meses depois,
ao regressar uma vez mais de
Santa Maria del Popolo.
Na Via del Corso, pois bem.

Agora, que o espanto
se ausentara, olhei-a
sem pudor, detive-me no
rosto cortado pelas rugas –
não era este o de um céu de abril.

Entre a alegria e a dor,
perplexo fiquei perante a
prótese metálica… e a velha
guitarra acústica.

Mas a voz… a voz, essa era ainda a
de um anjo.


(de No Rumor das Imagens, in Coreografando Melodias no Rumor das Imagens, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2018)



5.8.18

FERNANDO GUIMARÃES


Esquecemo-nos muitas vezes que a realidade é o termo de um diálogo que, inconscientemente, se desenvolveu no tempo através de muitos encontros. Fomos nós e os outros quem o tornou possível até se dar a sua apropriação através de uma linguagem. No contacto que temos com os objectos, estes absorvem uma multiplicidade de sentidos que se depõem como outros tantos limiares de acesso à sua e à nossa presença. 
Vai-se dando, assim, uma significação aos seres que se transformam progressivamente ou adiam uma forma onde, como diria Rilke, o “perder é ainda nosso”. Dizer casa ou árvore equivale por vezes a invocar algo mais do que o indício que nos permita reconhecer ou localizar coisas que entre árvores e casas o são também. Dizê-lo é ou poderá significar o conhecimento radical que cada ser em face do homem suscita e que os diversos modos de o desligar invocam. Só nesse momento saberemos medir a casa pelo seu equilíbrio, pelo espaço que ela nos restitui cheio de significações; e que a árvore se tornará tão autêntica para nós como a realidade das estações que a atravessam ou o fogo futuro em que a sua presença brilha. Ou que, ainda, pode uma casa ser tão completa e solitária como uma árvore.
A acção do poeta consistirá em inventar ou atribuir uma ordem, um equilíbrio, a esses significados, a esses valores. E, pelo caminho das palavras, regressa-se de um mundo que se tornou ausente, embora os múltiplos sentidos que tal caminho nos propõe acabem por preencher totalmente essa ausência


(excerto de «Poesia e Sentido», in Conhecimento e Poesia, Oficina Musical, 1992)

9.7.18


MARÍA ZAMBRANO


A origem da filosofia enraíza-se nessa luta que se trava ainda dentro do sagrado e face a ele. A filosofia nasceu, foi o produto de uma atitude original ocorrida numa rara conjuntura entre o homem e o sagrado. A formação dos deuses, a sua revelação pela poesia, foi indispensável, porque foi ela, a poesia, que primeiro enfrentou esse mundo oculto do sagrado. E assim, em parte, a insuficiência dos deuses, resultante da acção poética, deu lugar à atitude filosófica. Mas, por outro lado, vemos que na atitude que a actividade poética supõe, se encontra já o antecedente necessário que dará origem à filosofia. Como sempre que de uma actividade humana nasce outra diferente, e até contrária, não é só da sua limitação, do que não chegou a alcançar, que ela nasce, mas também daquilo que chegou a ser; do seu aspecto negativo unido ao positivo.
E assim, a filosofia inicia-se do modo mais antipoético, por uma pergunta. A poesia, essa, começa sempre por uma resposta a uma pergunta não formulada. Interrogar-se é próprio do homem, o sinal de que chegou a um momento em que vai separar-se do que o rodeia, qualquer coisa como a ruptura de um amor, como o nascimento.
Toda a pergunta indica a perda de uma intimidade ou a extinção de uma adoração. Nos dois processos actua como fundo último, determinante, o cansaço, talvez a necessidade de um alguém que quer tornar-se independente, viver por sua conta, libertar-se daquilo mesmo que foi o lugar da sua alma. E mais ainda do que a ruptura de um amor, é algo como o nascimento; o processo em que um ser se alimentou e respirou dentro de outro, intrincado com ele, se solta à procura do seu próprio espaço vital. Assim, a pergunta filosófica que Tales formulou outrora [“O que são as coisas?”] significa o desprendimento da alma humana, já não desses deuses criados pela poesia, mas da instância sagrada, do mundo obscuro de onde eles próprios saíram. Pois as imagens poéticas dos deuses eram, por sua vez, uma solução encontrada para essa necessidade de desprendimento, da saída para um espaço livre, para uma relativa solidão.


(excerto de «A Disputa entre a Filosofia e a Poesia sobre os Deuses», in O Homem e o Divino, tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Relógio d’Água, 1995)

19.5.18

MARIA VELHO DA COSTA


DESESCRITA

Quando o disserem calo ou farta brotoeja
cardo sem gosto e arremedo velho
tão serôdio apoucar de outros mais hábeis
ou por tão burilada terem sua arte
ou por sofrentes mais no engenho dela,
hei-de guardá-lo meu por apara da gesta
que todos tentamos por modesta
ao pegar das palavras todas gastas
e pôr-me com mais força a ver da giesta
e do rumor das rugas dos que passam
que para isso estou,
bem mais que no contá-lo e dividi-lo.
Por isso não se afina entendimento lato
nem maestria mais ao escrito e trato:
são tantos os instantes a cuidar pla rama e rua
que só fica o que resta
fresta
cantata rota e rouca
entre o escrito e a estória.


(de desescrita, edição da autora/Afrontamento, 1973)

13.5.18


SHAHD WADI


Os versos seguintes do fecho do poema de Suheir Hammad cantam justamente esta presença e insistência em narrar a memória palestiniana e em recriá-la. Herdamos a memória de um ramo de uma oliveira palestiniana que está mesmo dentro do nosso corpo, mas tossimos este ramo na forma de um poema. Todas as histórias e símbolos que estão na memória palestiniana estão reconfigurados através da arte e desta vez esta pós-memória vai ficar, pois tornou-se numa memória física: um objeto de arte. A nova memória transformou-se num poema e numa kafye palestiniana, muito bem costurada, e ambos contam as nossas histórias de vida do passado e do presente (HAMMAD, Suheir (2010) Born Palestinian Born Black & The Gaza Suit, Brooklyn: UpSet Press):

agora
eu sou a filha
a cuspir o ramo de oliveira
o filho reconstruindo a nação
o pai a reconstruir-se
eu sou a mãe
a cerzir as nossas histórias em kafiyes
cerzidos à nossa terra
de lágrimas e sangrar
por anos e por amor
cirzo a história
phalesteen
num kafiye
que não se desmancha nunca

Comentando os versos de Suheir Hammad, abu-Lughob & Sa’adi defendem, como vimos atrás, que é através da poesia, dos filmes e de outras formas artísticas que se opera o ato do testemunho de uma história que não é só sua – das gerações nascidas já no exílio – mas também a dos pais e avós, mantendo assim viva a memória coletiva. Suheir Hammad começa o poema com “now”, que é como quem diz: agora somos nós, é a altura desta geração contar a historia palestiniana, à nossa maneira, agora. Através destes versos de RAP cheios de raiva, Suheir Hammad torna-se o filho, a mãe, o pai que construíram a história e construíram a nação, mas sobretudo Suheir Hammad/eu/nós somos “a filha / a cuspir / o ramo de oliveira”. Quando abrimos a boca para contar uma história, qualquer história, tossimos do nosso corpo um ramo de oliveira, tossimos a história palestiniana. Trata-se de uma história bordada, escrita, pintada, cantada e dançada, uma história nossa de vida coletiva e pessoal que sai do nosso corpo, sem esforço, exatamente como respirar.

(excerto do capítulo III de Corpos na Trouxa: Histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio, edições Almedina, 2017; omito aqui o texto original do poema, em inglês)

12.5.18

HELDER MOURA PEREIRA


Coração e lâminas doiradas no vento de Verão,
estoira sobre as nossas cabeças a imposição
de várias categorias de ruído, nós perante
o nojo, a ocupação dos passeios, o lixo
a esvoaçar ao vento de Verão, e o lixo de cima,
onde há quase sempre uma televisão, ruído
repetido pelo dia, seguem-se opções de compra,
situações de empréstimo, maneiras de aluguer
por tudo quanto é lado, nós num refúgio,
numa espécie de refúgio, a fazer dos braços
um horizonte fechado, sim, de protecção,
tábua de muro, a parte de cima de raiz
a sobreviver, ainda, golpe após golpe.
O vento de Verão estragado à nossa volta,
imagina que o golpe de sorte não se tinha dado
e éramos sombras inúteis a carregar fardos
de desgosto, sem dizer uma única palavra
quando passávamos um pelo outro cheios de sede.


(de Pela parte que me toca, Assírio & Alvim, 2013)

11.4.18


CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE


OITAVA SUGESTÃO

Ensina a tua filha a rejeitar o desejo de agradar. O dever dela não é tornar-se alguém de quem se gosta, o seu dever é ser uma pessoa em pleno, uma pessoa que é honesta e tem consciência da humanidade igual das outras pessoas. Lembras-te de eu te contar como me incomodava que a nossa amiga Chioma me dissesse com frequência que «as pessoas» não «gostariam» de algo que eu queria dizer ou fazer? Senti sempre da parte dela uma pressão implícita para que eu mudasse de modo a me encaixar em algum molde que agradaria a uma entidade amorfa chamada «pessoas». Incomodava-me, porque nós queremos que os que nos são mais próximos nos encorajem a sermos quem somos autenticamente.
Por favor, nunca exerças este tipo de pressão sobre a tua filha. Ensinamos às meninas a agradarem, a serem boazinhas, a serem falsas. E não ensinamos o mesmo aos meninos. Isso é perigoso. Muitos predadores sexuais têm-se aproveitado disso. Muitas raparigas não revelam que foram vítimas de abuso porque querem ser boazinhas. Muitas raparigas passam demasiado tempo a serem «boazinhas» para com as pessoas que lhes fazem mal. Muitas mulheres pensam nos «sentimentos» daqueles que as estão a magoar. Esta é a consequência catastrófica do desejo de agradar. Temos um mundo cheio de mulheres que não são capazes de respirar livremente por serem condicionadas há muito tempo a fazerem tudo por tudo para agradarem.
Por isso, em vez de ensinares à Chizalum a agradar, ensina-a a ser sincera. E bondosa.
E corajosa. Encoraja-a a falar francamente, a dizer o que realmente pensa, a falar com verdade. Elogia-a quando ela o fizer. Elogia-a especialmente quando ela tomar uma posição que seja difícil ou pouco popular porque acontece que é a sua posição sincera. Diz-lhe que a bondade é importante. Elogia-a quando ela se mostrar bondosa com os outros. No entanto, ensina-lhe que a sua bondade nunca deve ser tida como certa. Diz-lhe que também ela merece a bondade dos outros. Ensina-a a defender o que é dela. Se outra criança pegar no brinquedo dela sem a sua autorização, recomenda-lhe que o reclame, porque o seu consentimento é importante. Diz-lhe que se alguma coisa alguma vez lhe causar desconforto deve falar, deve dizê-lo, deve berrar.
Mostra-lhe que não precisa de que toda a gente goste dela. Diz-lhe que se alguém não gostar dela, haverá outras pessoas que gostarão. Ensina-lhe que não é um mero objeto de quem se gosta ou não se gosta, é também uma pessoa que pode gostar ou não gostar. Na adolescência, se voltar para casa a chorar por causa de alguns rapazes que não gostam dela, faz-lhe saber que pode optar por não gostar desses rapazes – sim, é duro, eu sei, basta-me recordar a minha paixoneta pelo Nnamdi na secundária.
De qualquer modo, gostava que alguém me tivesse dito isto.


(in Querida Ijeawele – Como Educar para o Feminismo, tradução de Ana Saldanha, Publicações Dom Quixote, 2018)

1.4.18

KABIR


A primeira flor a desabrochar
fá-lo com dor
Deixa de ser apenas uma flor
Mil e uma flores se hão-de seguir
sem que nada as impeça
mas nenhuma flor será como essa


(in O Nome Daquele Que Não Tem Nome, versões de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, 2016) 

23.3.18


JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA


INDÚSTRIA

Não sei ser útil como a chuva
nas raízes das árvores,
ou o osso que o cão fareja:
já tentei – se tivesse
de dançar como uma abelha,
em frente da colmeia,
de certo erraria os passos
e indicaria um rumo estéril.

O destino, erros na transcrição
de aminoácidos, uma educação
inadvertidamente condenada
ao fracasso? Já tive
momentos de felicidade,
ignorando mãos, gestos,
propósitos, temo que,
um dia destes, a minha
morte não sirva para nada.


(de De Passagem, Assírio & Alvim, 2018)

18.3.18


VITOR SILVA TAVARES


Incensado, esmiuçado, proposto à circulação, Dubuffet está no papo.
A não ser que não esteja. Vejamos como esperneia: «A arte é por essência repreensível e inútil! e anti-social, subversiva, perigosa! E quando não é isto, não passa de moeda falsa, manequim vazio, saco de batatas.»
Ora há coisas que não se dizem. Pior: que não se pensam. Muito pior: que não se fazem. Ao dizê-las, pensá-las, fazê-las Dubuffet conspurca o território sagrado da Arte e da Cultura, hostiliza os grão-sacerdotes, dá provas de uma perigosa heresia libertária. Então a gente aplaude-o e ele recusa-se a ser dos nossos?
Então a gente divulga-o e ele, em troca, ofende-nos? Então a gente compreende-lhe a bizarria de artista e ele, ainda por cima, ridiculariza-nos? Então a gente cumula-o de análises suculentas e lindos adjectivos e ele desautoriza-nos, enxovalha-nos, agride-nos? Pois bem: vamos amá-lo por isso mesmo, vamos ser masoquistas, vamos digerir-lhe, deliciados as irritações, os furores, as apóstofres. Queira ou não queira, nós, a cultura de massas, vamos digeri-lo.
«A cultura tende a tomar o lugar que foi outrora o da religião. Como esta, ela tem agora os seus sacerdotes, os seus profetas, os seus santos, os seus colégios de dignitários: o conquistador que visa a sagração apresenta-se ao povo já não apoiado de um bispo, mas de um prémio Nobel. Agora, é em nome da cultura que se mobilizam e se pregam as cruzadas. É ela agora o ópio do povo.» (Jean Dubuffet).
Como se vê, o artista é mesmo difícil de tragar. Nega a cultura no momento em que ela serve de arrimo a tanta boa gente.
Mas: que cultura?
A «asfixiante cultura».

[…]

Sendo pois contra os museus, contra os mercados das vaidades e dos valores, contra toda a forma de institucionalização das artes, Dubuffet propõe [no livro Asphyxiante Culture (1968)], por isso mesmo, o que afinal vem praticando: para além das noções impostas, uma arte no seu estado bruto, original primitivo, criação simultaneamente individual, pessoal e feita por todos, livre de toda a ganga intelectualista, descondicionada, descomplexada, em revolta permanente, em permanente amour fou. Utopia? Não: recusa do obscurantismo programado pelos clercs da cultura e seus beneficiários. Porque, di-lo Dubuffet, «os homens de cultura estão afastados do artista como o historiador do homem de acção». Ao artista compete pois fazer da sua arte uma contestação vivificante.


(excertos de «Dubuffet: Contra a Cultura», in textinhos, intróitos & etc, Pianola editores, 2017 / original in Diário de Lisboa – Suplemento Literário, 19 de Setembro de 1968.) 




JEAN DUBUFFET
«Borne au Logos V» (1967)
Colecção Berardo, Lisboa, Janeiro de 2018

17.3.18


WANG WEI


Visita ao mosteiro da compreensão

O carreiro que passa pelo meio dos bambus começa nas terras baixas
No Pico de Lótus fica a morada da compreensão
Desde a janela o olhar abarca as terras de Ch’u
Para além da floresta reúnem-se nove rios.

Sentados de pernas cruzadas, sobre as ervas tenras
Por entre os pinheiros altos ecoam os salmos
Habitamos o vazio, longe dos dogmas da doutrina
A contemplar o mundo entendemos o não-nascimento.


Visita ao Mestre zen Tsao do mosteiro do Dragão Azul

Velho decrépito,
Vagarosamente encontro a sala da meditação
Desejo interroga-lo sobre o sentido do espírito original,
Já avisado contra o erro de encontrar o vazio.

Nos seus olhos celestes reflectem-se montanhas e rios
O seu corpo santo encarna o universo
Não me espanta se o calor tórrido se dissipa
Ele sabe levantar o vento sobre a terra.


(de Habitar o Vazio, versões de Manuel Silva-Terra, editora Licorne, 2018)

16.3.18

«MARTÍRIO DE SANTA ÚRSULA E DAS ONZE MIL VIRGENS» (c. 1522), do MESTRE DO RETÁBULO DE SANTA AUTA / «MARTÍRIO DE SANTA ÚRSULA» (1610), de MICHELANGELO MERISI DA CARAVAGGIO
em memória de Marielle Franco

Onze somos tantas como onze mil,
Nesta recusa de conceder
Nossos corpos e nossos sorrisos
E nossa esperança à sedução
De um príncipe poderoso. Uma só
Serei diante do mais brutal
Dos tiranos e aceitarei a seta

Que me está destinada, não
Sem que antes diga que não reconheço
O medo e continuarei negando
A sistemática prática da intimidação
Pela violência, mesmo depois
De o meu peito ser atingido; porque
Somos onze e onze mil e mais

Fortes do que a insanidade
Dos vossos olhos deixados na penumbra,
Virados para nós sem que vejam
Sequer quantas somos, onze e mais
Do que as onze mil nas ruas, passando,
Todas, cada uma dizendo com sua voz,
Cada uma mostrando a pele do rosto

E o cabelo solto. Continuaremos,
Uma só de nós, sorrindo enquanto
Nos considerarem estrangeiras, mulheres
Daqui, que a nós pertencemos e que
Esperamos, mais do que a justiça,
A ternura,
A presença de cada corpo

Na vida à qual pertence. E somos
Onze vezes as outras mil que foram
Daqui e aqui ignoradas, somos todas
As que numa voz podem ser ditas, contra
A morte da inocência por sistema. Uma
Só somos, juntas, não fugindo da seta
De um poder 
só, escondido, que tudo ignora.



7.3.18


ORHAN PAMUK


Há muitas coisas que me incomodam na maneira de viver dos meus confrades, incapazes de conviver sem rivalizarem em boatos, e no ambiente deste lugar, que é de uma alegria suspeita. Para evitar que eles me achem arrogante e me agridam, fiz também um ou dois desenhos para o satírico, mas não penso que isso baste para lhes acalmar a inveja a meu respeito.
Deve dizer-se que eles têm motivos para serem invejosos: para a mistura das tintas, as molduras e as margens traçadas à régua, para a composição da página e para a escolha do tema, para o desenho dos rostos ou o arranjo das cenas de multidão na guerra ou na caça, para a pintura de animais, de reis, de navios e de cavalos, de guerreiros ou apaixonados, para reproduzir numa imagem toda a alma da poesia, e mesmo para as iluminuras, não tenho rival. Não vos digo isto para me gabar, mas só para que me compreendais. Com o tempo, a inveja dos rivais torna-se para um grande pintor um instrumento tão necessário e indispensável como a paleta.


(excerto do 4.º capítulo de O Meu Nome é Vermelho, tradução de Filipe Guerra, Editorial Presença, 2007)

27.2.18

Sabei que a História nunca
Deu razão a ninguém, nem a ninguém
A tirou. A posteridade, tal como
A conhecemos e praticamos
É coisa americana, sabe
A rebuçado de coca-cola e vem

(quando vem) embrulhada
Em plásticos pequeninos, daqueles
Que fazem barulho
Na fila de trás do cinema, entre
As mãos de uma senhora idosa.
Nunca a História (reparai

na maiúscula inicial, no alto
conceito que está em causa)
Foi capaz de conferir
Estatuto de primazia ou firmar
No consciente colectivo a pureza
Dos tidos por bons. Alguns

O asseguram, em teses académicas
Até; desencantam provas
Tão verosímeis e evidentes, aplicam
Placas toponímicas a assegurar
Tais certezas. Dos desejos mal ou nunca
Cumpridos não reza

Essa História, disciplina dos simples,
Manipanso de trazer no bolso
Para consolar a validade da sorte. Aos
Escarros e às deselegâncias
Resta remanescerem em frases
De autocarro e mercearia,

Dichotes de folheto falado entre
Outras basófias de dia-a-dia. Não
Serão o bocejo nem a dor de dentes
Do herói das letras
(ou das artes, em geral) a ser
Tratados condignamente

Em efeméride; antes o luzidio
Soneto, uma ou outra contra-senha
Inaugural dalgum movimento
Mais ou menos importante, mais
Ou menos representativo de toda
Uma geração. Nunca foi

Justa a História, à qual tudo perdoamos
Em nome da erudição, a cuja
Letra damos eventual valor fiduciário
Com que pagamos a boa
Consciência inconsciente dos clássicos.
E não escapamos ao ruído, ao tal

Rumor estrepitoso durante o filme todo;
Incomodados mas sempre presentes,
Para não perder o final
Nem deixar cair a ilusão de mais
Uma obra concluída
A figurar nos futuros almanaques

Com listas de títulos e autores
Compulsadas por amanuenses entediados,
Dedos cotejantes induzidos
Por vigilantes entidades especializadas
Na heterodoxa afasia
Que tanto alívio dá à memória.


26.2.18


RAMIRO S. OSÓRIO


tem sotaque divino
a única poesia que frequento

sou íntimo dos deuses

sei o que digo

não o que escrevo

a verdade tem um cheiro
que não engana

chamar-se-ia senão mentira
a poesia


(de Ao Largo de Delos, Companhia das Ilhas, 2018)

21.2.18

GRUPO KRISIS


Quem, hoje em dia perguntar a si próprio qual o conteúdo, o sentido ou a finalidade do seu trabalho, enlouquece – ou torna-se factor de perturbação do funcionamento autotélico da máquina social. O homo faber, outrora orgulhoso do seu trabalho, e que, ao seu modo limitado, ainda levava a sério o que fazia, está hoje tão fora de moda como uma máquina de escrever. A engrenagem social tem de continuar a funcionar a qualquer preço, e ponto final. Quanto à descoberta do sentido, para isso existem os departamentos de publicidade, exércitos inteiros de animadores e de psicólogas de empresa, os consultores de imagem e os «dealers» da droga. Quando se propagandeia interminavelmente o lema da motivação e da criatividade, é certo e sabido que de uma e da outra já nada sobra…, a não ser enquanto auto-engano. É por isso que hoje as capacidades de auto-sugestão, de autopromoção e de simulação de competências se contam entre as virtudes mais importantes dos gestores e das trabalhadoras especializadas, das estrelas dos media e dos contabilistas, das professoras e dos arrumadores de automóveis.


(excerto de Contra o Trabalho, tradução de José Paulo Vaz, 2.ª ed.: Antígona, 2017)

15.2.18


TATIANA FAIA


mágoa sem objecto

na casa as mulheres rasgavam
para panos os lençóis velhos
aproveitavam as sobras
costuravam juntas
reclamavam poderes oraculares
que nunca tinham tido
saíam muito pouco

a mais velha às escondidas
fumava o cachimbo de um marido
embarcadiço mas sobre ela
ninguém se ia dar ao trabalho de escrever
a rime of an ancient mariner
não importava quantas vezes
acendesse aquele cachimbo

a única perenidade que podia
ter alcançado residia em que
alguém dela tivesse feito
uma estátua em pedra
e séculos depois alguns pescadores
a tirassem do mar como
àquela vénus em rodes

elas deviam ter sido as sereias
algum homem com risco de vida
tinha o dever de se ter feito atar
ao mastro de um navio qualquer
vedar com cera os ouvidos dos seus marinheiros
só pelo puro prazer de as ouvir cantar

mas para efeitos daquele enredo
elas não puderam
ser mais do que um bando
de euricleias sem história excepto
pelo hábito reduzido a inofensivo
de chorar sobre cicatrizes


(de teatro de rua, do lado esquerdo, 2013)

12.2.18


CATARINA SANTIAGO COSTA


Haverá quem queira roer-te a líbido
só porque o teu sexo tem a forma de um grão de café
com molusco dentro. Mas tu
mantém-te livre sempre.
E o que é ser livre senão cultivar e colher
aquilo que nos hidrata e nutre
dos alicerces à água-furtada.

Há um homem no bairro que me olha com os dentes todos,
um homem pequeno com um filho mais pequeno que ele
por sua vez pouco maior que a minha pequena,
um homem com um cão corpulento
e uma dentição tão feroz como a dele.

Um dia esse homem vai agarrar-me
seviciar-me, apostado que está em
amestrar-me, tornar-me servil
– é isso que temo e me diferencia
da vizinhança masculina.

Está tudo bem por ora:
cheguei sã e salva a casa,
a porta, o cofre-forte e o frigorífico estão intactos
os iogurtes: frescos e dentro do prazo
as plantas desabrocham
as abelhas polinizam lá fora.
Tudo está em ordem.


(de Filha Febril, Douda Correria, 2017)

21.1.18




«A DOR» (1934), de HEIN SEMKE


De que deus és crente, mulher,
Que versículo te verga, diante
Do mundo, a dignidade? De olhos
Abertos para o chão, de mãos
Firmes sendo apoio do teu próprio
Corpo, mulher, permaneces.
Talvez possas caminhar, talvez
Um dia atravesses (solidão) para
O avesso dessa fé, na evidência
Dessa dor, rasgo que não é caminho. O
Pescoço curvado, a cabeça reduzida
À altura dos ombros,
És menos aqui do que podias ser.
Para que falta de lucidez
Te inclinas assim? Saberias
Melhor da luz noutro corpo.
Ou nesse mesmo, noutra posição,
Noutro jeito de se encontrar, forma
A aproximar-se da alegria. Em que
Sofrimento crês tu, filha
De um outro ventre, como o teu, deste
Bronze de silêncio?




12.1.18

PEDRO TIAGO


MATAR UM HOMEM

Quando, aqui há uns anos, me perguntaram se era capaz de matar um homem, respondi que sim, mas, na verdade, se me perguntassem isso hoje, penso que responderia o contrário.
A verdade é que já matei homens pelo caminho. A alguns retirei os olhos, tendo-os, depois, guardado numa caixinha de madeira vermelha sob a cama, em cima de um tapete velho. Julgo, com base num conhecimento livresco, e não empírico, que já não existam, só a caixa, talvez apenas com um muco estranho a empapá-la, ou uma secura extrema de cheiro a corpos mortos, quando a abrirem. Mas isto, como quase tudo, não vem ao caso, vem apenas ao texto, num fluxo absurdo através do qual o autor, que temo realmente ser eu, nos leva.
Sei que era incapaz de matar um homem, resumindo, que é o que importa, e não interessando os homens que matei entretanto, que isso, diga-se, foi outra pessoa, perdida numa estase, qualquer, numa onda de tempo que ficou congelada, como se numa fotografia, a perpetuar um gesto, (de assassinato, porque não?), ao longo da eternidade. Ou seja, o que se passa é que este eu, com todo o peso, certamente, de todos os outros anteriores, não era capaz de matar um homem. Aliás: não é capaz de matar um homem. Porque sabe que um homem é uma máquina poética que morre sozinha.


(primeiro poema de O comportamento das paisagens, Artefacto Edições, 2011)



junho

não é tempo para pés nem para pernas e não é tempo
para os outros (quem são os outros?)

tudo arde em itálico, no terraço, duas pessoas perguntam
coisas, uma responde; uma é hiperactiva, outra tem
dislexia, a terceira sofre de anorexia nervosa. todas
pensam em línguas dentro da boca, as línguas ocupam
demasiado espaço, dentro das cabeças, mais do que se
julga. mãos nos parapeitos, pés dentro de chinelos,
a língua dentro da boca, enjaulada nos dentes.

não é tempo para poesia nem para palavras, é tempo
para dormir.


(primeiro poema de a lonely gigolo, do lado esquerdo, 2018)

11.1.18

HELDER GOMES CANCELA


O ICONOCLASTA

Parte dos procedimentos criativos desenvolvidos ao longo do século XX assenta na ideia de que a acção criativa pode operar por um trabalho negativo de profanação dos legados culturais e dos valores artísticos, e de que a subversão pode constituir uma postura artisticamente muito produtiva. Este processo de subversão acompanha o movimento de secularização que inaugurou a modernidade: é a possibilidade de questionar a possibilidade do sagrado que torna possível estender o questionamento à esfera das produções humanas. É a possibilidade de questionamento da lei e da norma de raiz religiosa que torna possível a subversão das regras e das normas artísticas. É o questionamento da sacralidade do passado ou da reverência face às heranças que permite a subversão da tradição.
Mas a arte das últimas décadas é também a demonstração do paradoxo que atravessa quase todas as posições iconoclastas: elas exigem a manutenção da sua pertença à esfera do sagrado como condição da eficácia do gesto de profanação. Implicam, no mínimo, a suposição da natureza culturalmente excepcional da arte, transportando para as relações artísticas os modelos de relação que haviam sido modelados no plano do sagrado. O que daqui resulta é a ressacralização da própria experiência da arte.
Não é inconsciente, nem inocente, a aproximação do profanador à sacralidade do objecto de profanação. Não é inocente, nem inconsciente, a pretensão da sacralidade do gesto de profanação. Num e noutro caso, transportar a arte para o plano do sagrado é supor que é possível fazer dela uma experiência que escapa à racionalidade crítica. E este é o culminar do paradoxo: como pode o iconoclasta pretender que o seu gesto escapa à possibilidade de crítica?



(in O exercício da violência, companhia das ilhas, 2014)