11.1.18

HELDER GOMES CANCELA


O ICONOCLASTA

Parte dos procedimentos criativos desenvolvidos ao longo do século XX assenta na ideia de que a acção criativa pode operar por um trabalho negativo de profanação dos legados culturais e dos valores artísticos, e de que a subversão pode constituir uma postura artisticamente muito produtiva. Este processo de subversão acompanha o movimento de secularização que inaugurou a modernidade: é a possibilidade de questionar a possibilidade do sagrado que torna possível estender o questionamento à esfera das produções humanas. É a possibilidade de questionamento da lei e da norma de raiz religiosa que torna possível a subversão das regras e das normas artísticas. É o questionamento da sacralidade do passado ou da reverência face às heranças que permite a subversão da tradição.
Mas a arte das últimas décadas é também a demonstração do paradoxo que atravessa quase todas as posições iconoclastas: elas exigem a manutenção da sua pertença à esfera do sagrado como condição da eficácia do gesto de profanação. Implicam, no mínimo, a suposição da natureza culturalmente excepcional da arte, transportando para as relações artísticas os modelos de relação que haviam sido modelados no plano do sagrado. O que daqui resulta é a ressacralização da própria experiência da arte.
Não é inconsciente, nem inocente, a aproximação do profanador à sacralidade do objecto de profanação. Não é inocente, nem inconsciente, a pretensão da sacralidade do gesto de profanação. Num e noutro caso, transportar a arte para o plano do sagrado é supor que é possível fazer dela uma experiência que escapa à racionalidade crítica. E este é o culminar do paradoxo: como pode o iconoclasta pretender que o seu gesto escapa à possibilidade de crítica?



(in O exercício da violência, companhia das ilhas, 2014) 

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