HELDER GOMES CANCELA
O ICONOCLASTA
Parte dos procedimentos criativos desenvolvidos ao longo do
século XX assenta na ideia de que a acção criativa pode operar por um trabalho
negativo de profanação dos legados culturais e dos valores artísticos, e de que
a subversão pode constituir uma postura artisticamente muito produtiva. Este processo
de subversão acompanha o movimento de secularização que inaugurou a
modernidade: é a possibilidade de questionar a possibilidade do sagrado que torna
possível estender o questionamento à esfera das produções humanas. É a
possibilidade de questionamento da lei e da norma de raiz religiosa que torna possível
a subversão das regras e das normas artísticas. É o questionamento da
sacralidade do passado ou da reverência face às heranças que permite a subversão
da tradição.
Mas a arte das últimas décadas é também a demonstração do
paradoxo que atravessa quase todas as posições iconoclastas: elas exigem a manutenção
da sua pertença à esfera do sagrado como condição da eficácia do gesto de profanação.
Implicam, no mínimo, a suposição da natureza culturalmente excepcional da arte,
transportando para as relações artísticas os modelos de relação que haviam sido
modelados no plano do sagrado. O que daqui resulta é a ressacralização da própria
experiência da arte.
Não é inconsciente, nem inocente, a aproximação do
profanador à sacralidade do objecto de profanação. Não é inocente, nem
inconsciente, a pretensão da sacralidade do gesto de profanação. Num e noutro
caso, transportar a arte para o plano do sagrado é supor que é possível fazer
dela uma experiência que escapa à racionalidade crítica. E este é o culminar do
paradoxo: como pode o iconoclasta pretender que o seu gesto escapa à
possibilidade de crítica?
(in O exercício da violência, companhia das ilhas, 2014)
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