17.5.08

JOSÉ BENTO

[...]
Há os que fazem da sua poesia um processo de afirmação social, uma carreira com sucessivas fases para se alcançar a glória, um meio de obter aplausos e prémios, para o que usam uma estratégia que na verdade é tão necessária como para qualquer outra acção bélica. E não só hoje e aqui, embora os fins e os processos de alcançar tenham variado e actualmente revistam aspectos próprios do «marketing» literário contemporâneo. É conhecida a imagem do mundo antigo dos poetas coroados de louros, protegidos pelos senhores cujas glórias celebravam, conselheiros ou meros adornos de reis, associados a um governo temporal ou espiritual, participando dos mesteres dos astrólogos e dos bobos, ajudando a puxar o carro do poder ou passeando-se nele.
Não se pode assinalar uma função ao poeta, que nenhuma tem senão o sê-lo, mas essa sem dúvida que não é a sua.
Há os gestores de cultura, que é hoje um ornamento para qualquer poder que pretende instituir-se, mas os poetas estão para além da sua gestão. Não porque não sejam deste mundo, porque o são, e o provam ao escrever, mas porque são poetas; estão à margem de qualquer forma regulamentada de vida e devem assumir a sua marginalização com todas as consequências: independência total, rejeição de todas as espécies de consolo ou de compensação. E porque devem estar à margem e isentos de possibilidade de aliciamento ou suborno, são inacessíveis aos gestores de cultura, pois gerir a cultura tem sido actuar sobre (quase sempre manipular) o passado, e os poetas enraízam-se no passado não para avançar no futuro, pois não há avanço neste campo, mas para conhecer um presente sempre incerto e mudável, cujo sentido têm de auscultar continuamente, duma forma inapreensível para quem o poder invista como gestor e, assim, torne seu agente. Aliás, actuar sobre o passado pode ser incómodo e inquietante, por aí poder existir a imagem já clarificada do presente (ainda obscuro) e, portanto, a lição (leitura) desse presente. Não se esqueça que um poeta como Camões, que dir-se-ia ser de passadas e gloriosas epopeias e de desvairados amores, resultou há pouco impossível de comemorar.
[...]

(excerto de Sobre a poesia de Cristovam Pavia, in Poesia, Moraes editores, 1982 – Círculo de Poesia)

16.5.08

Que novas festas, novos cantos pedes?

Estreou ontem, no Convento dos Capuchos (Almada) a peça de António Ferreira (1528-1569), A Castro, levada à cena pelo Teatro de Papel.
Estará naquele espaço até dia 31, às sextas e sábados e percorrerá vários monumentos pelo país, conforme programa disponível.

15.5.08

MARGARITA ALIGER

LÁGRIMAS DOS OLHOS, COMO CENTELHAS DE SÍLEX


Lágrimas dos olhos, como centelhas de sílex,
como uma palavra justa, arrancar para que serve?
Nada há de especial. A palavra é como fogo,
e o coração do homem não vive de soluços.
Não é absolutamente isso que me atormenta.
Mas levantarmo-nos de madrugada, à chegada do dia,
a dizer a quem vai à frente:
- Felicidades! –
Dar-lhes uma canção, com toda a alegria,
que proteja como uma autêntica armadura,
das palavras que soam vãs e falsas.
Queremos do homem não a centelha mas o fogo.

(tradução de Manuel de Seabra, in Antologia da Poesia Soviética, editorial Futura, 1973)

14.5.08

RUI DINIZ

DO EXÍLIO


Os anos ecoavam suavíssimos. Um vento escuro
furava as escarpas. Nos olhos azulados do tempo
o desgosto alastrava. Era
como o tactear de um cego silêncio, um livro
indecifrável, som repetido pela chuva, humedecendo
o cérebro. Do quarto onde me tinham posto eu via
o mar. Quando me fatigavam podia contemplar as
tapeçarias. Eram velhas cenas de caça, veados
desfalecendo sob as furiosas matilhas. E, montados
nos seus fogosos cavalos, senhores impassíveis,
contemplando...

Alguns, principalmente à noite, pousavam em
mim os olhos consumidos na interminável
melancolia.
Enquanto ouvia Chopin, brilhavam-me nos lábios
as terríveis lágrimas do regresso. A leste da casa
o mar devorava.
O aborrecimento tomou-me a maior parte desses
dias.
Ah, pudesse eu estar em Espanha, nas vilas quentes.
Ou no sul, nas ardentes praias do mediterrâneo.
Pouco a pouco fui pensando na morte, na afinal
inútil persistência desses dias e noites cheias de tédio.
Uma manhã acordei sobressaltado por estranhas
profecias: vira o meu corpo rolando, alucinado,
pelas escarpas da costa e as aguas estremecendo
quando me recebiam…

Uma noite, por fim, quando me suicidei, vi, por
entre as mãos, como o poema se desfazia,
ameaçando...

(de Ossuário (ou: A Vida de James Whistler), &etc, 1977)

13.5.08

VERGÍLIO ALBERTO VIEIRA

Uma particularidade distingue, em suma, a subliteratura da literatura: enquanto esta nasce, cresce e morre, aquela nasce e morre, apenasmente.

(de Destino de Orfeu, Livros do Bolso, 1987)
MANUEL GUSMÃO

FÁTIMA


Reconto o teu conto largo e extensível; e escuto o seu poema que se põe a devorar a propria vida e a tecer a verdade no corpo a corpo das suas almas com as várias Línguas do vivo tumultuoso. Maravilha fatal da nossa Idade! Idade maior, Idade de Ouro, tu, irmã maior das ondas e das vozes.

O estropiado – um toco de dedos em cunha faz-lhe de mão direita e desse lado o quadril rebaixado tem suspensas as pernas atrofiadas – contempla estarrecido o esplendor ardido do anjo há pouco resplandecente branco, agora esturricado negro, como um tição desfazendo-se em cinza, o anjo que trocara o mandado do seu senhor pela promessa não dita que o obrigara ao pedido da criatura terrestre, mortal e ferida sem remédio, que não quisera o céu.

«Bailai lá!» dissera eu,
«E eu bailei i, criatura angélica que da dor fiz
a insuportável alegria daquela dança do mundo»
– luxo da luxúria e ascese
da ascensão – Pierrot lunaire e
pequena Columbine na onda
e no voo de dois em um
só corpo: o terceiro1.


A criatura estremece – se em virtude do espectáculo, se do modo como terminou, ou se por razão simples do mal que a tolhe – qual a causa não a sabemos. Ri-se de embevecida ainda mas é já um espanto a entristecer que se lhe espalha desde a boca que se baba. Como ele, estremecia também a aura vermelha que o nimbava e ao cordeiro preto, e o halo de água marinha virando roxo-enegrecendo que tremeluzia rodeando o anjo suicida: i/ a manhã vem vindo/ nos braços d'aurora.

Deu-se então a bradar em altas vozes a ver se as gentes se amotinavam, a ver se alguém vinha e o ajudava a suportar aquela tão violenta e inédita mistura de dor e alegria que o anjo diante dele executara, como quem sua própria morte em glória executa.

Sentindo-se chamado em alta grita, eis que acorre o jardineiro comum daqueles lugares. O estropiado diz-lhe «Disto tudo – e em dizendo, um gesto da mão esquerda fazia, que mais que o seu palheiro abrangia – poderá vossemecê fazer um jardim?»



1 aqui, o do anjo.


(de A Terceira Mão, editorial Caminho, 2008)