15.12.07

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

CLAREIRA


Um branco lunar, prestígios sem certezas
os galos lutadores arrebatam o jardim
é tão rápido um lugar enquanto avança o vento
debaixo de que árvore se pode ver

a chama pousada por um brado
mais forte, mais fraco
passagens de cor vermelha
intensidades, torções

teus olhos buscam na clareira o ponto invisível
um único sentido, infinitas vezes

através de que perguntas, de que respostas
se regressa à partes inseparáveis?

(de A Estrada Branca, Assírio & Alvim, 2005)

14.12.07

ANTÓNIO RAMOS ROSA

A S. JOÃO DA CRUZ


Por uma secreta escada
desceste ao nocturno horto
onde encontraste o Amado
pastor de invioláveis graças
entre perfumadas nascentes.

Sem arrimo e com rumo
da tua cegueira vidente
te consumaste no centro
da divindade obscura,
alma e amor conjugados.

Num cego e escuro salto
subiste e logo desceste
para de novo subires
à indizível essência
de um não sei quê misterioso
ao qual, inteiro, te rendeste.

Pão vivo e fonte eterna
chamaste ao fruto escondido
que o teu desejo aspirava
e nele encontraste guarida
mesmo dentro da noite.

Sabias não haver caminho
para chegar a essa fonte
de que a origem não sabias
e que de tudo era origem
e a que chegaste num lance.

Toda a ciência transcendias
sem entender entendendo
e no puro imo bebias
o sol da profunda noite
em divina companhia.

Nada mais te contentava
que a vida da tua vinha
que lá no alto pairava
e lá no fundo ardia
com o rosto da formosura.

Chegaste aonde não eras
por onde não eras foste,
sempre às escuras na noite
até esse não sei quê
que é a existência da Vida.


(de Os Signos da Amizade, edições Asa, 2004 - colecção pequeno formato)
EDWIN HONIG

Antes que as palavras
pudessem servir de conforto
uma definitiva amargura
dissipá-las-ia


- Ninguém apreende
o que está além de si

nem como
na mão quente
que lhe sustém o pensamento

o gérmen seu irmão
mata instantaneamente


Sempre
além da fala
e da cópula
há a guerra
e a morte


O criminoso
sobrevive à vítima
para se tornar
um homem tranquilo


Nenhum homem é
em si próprio
o inocente
que supõe ser


Há sempre
a guerra

o insignificante
reduzindo a lixo o essencial
o incêndio submerso
em densas espirais

e o desenho diluindo-se
sem o divisarmos
com a plenitude final
já à vista


Não há seres
interiores ou exteriores

só o frenesim dos anseios
bruxuleando
ao longo dos corredores
pelas infindáveis trevas


Na luz
não há coração

só a degradação
e a dissipação
da sempre mesma luz


Sempre
a guerras prestes a eclodir
toda a luz
desaparece de repente

todo o pensamento
se esvazia


Não há
primeiros nem últimos

só o amargo fim


(de Dádivas de Luz, tradução de António Ramos Rosa, editorial Caminho, 1992 - Caminho da Poesia)

11.12.07

FERNANDA BOTELHO
Nasceu no Porto em 1926. Formou-se em Filologia Clássica em Coimbra e em Lisboa. Publicou os primeiros poemas na revista Távola Redonda. Da sua bibliografia apenas consta um volume de poesia, tendo-se destacado, principalmente, na prosa, mas também como tradutora.
Morreu hoje.

"(...) a sua poesia árida, seca, sarcástica, antilírica, é notável, como de uma Emily Dickinson vivendo a sua lucidez na desagregação de uma sociedade e de um mundo, aos quais aplica uma desassombrada e cínica visão, que usa insòlitamente as palavras e os símbolos, numa forma concisa, para sugerir afinal uma personalidade segura de si e da sua perspicácia, ìntimamente entregue a uma intensidade sentimental que desdenhosamente recusa exibir-se. (...)"
(Jorge de Sena, in Líricas Portuguesas)

(ver aqui uma entrevista ao Público, em 2003)


MIOPIA

Sempre que vejo
o que os meus olhos não queriam
ver
(mas que sabem ser verdade)
É sempre este doer.
Como se a minha sensibilidade
estivesse toda no olhar e ver.
Como se a minha revelação
apenas viesse inteira,
para além da fronteira
do que os meus olhos dão.

Sempre que vejo...
Porque me dói assim?
Porque se desprende em mim
essa mágoa-essência
de surpresa retardada?

A minha consciência
está míope e cansada.


RENOVO

Quem falou na eternidade?
(Não espero mais que cinco minutos).
O tempo vai-me ceifando a idade
e aliviando os lutos.

O meu desgosto
foi posto ao lado.

Renasço sempre poderosa
em verso ou prosa,
no berço do sem-cuidado.

(in Távola Redonda, fascículo 4 - 1 de Março de 1950)


AS COORDENADAS LÍRICAS

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.

A geométrica forma de meus passos
Procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo
às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
- as minhas coordenadas.


LEGENDA

Como quem sente
na legenda do presente
o fim duma história breve,
vou vivendo um sonho intacto
num pesadelo crescente
uma luz fecunda e leve
nos olhos pardos dum gato.

(de As Coordenadas Líricas, 1951)


LUZ

A mesurável condição humana,
quanto me exige! Quanto proclama
o seu poder em mim!

Tall submissão nem me redime
nem me liquida.
Não é renúncia sublime
nem carícia retribuída.

Não tenho eira nem beira,
vivo nas dobras da terra
e aceito quanto me dão.

Eis o meu nome: toupeira.
- E o meu olhar se descerra
apenas na escuridão.

(in Graal, n.º 2)


ELOGIO DO SONO

Ó noite das mães-noites - os açoites
da sombria harmonia entre o binómio,
o diálogo e o solitário Orfeu!
Entre um anjo ansioso e um bom demónio,
O binómio sou eu.

Mudos por fim caímos, diagonais
entre dois ais do mais lambido pranto
a regar o sorriso do infecundo.

Solta-se então o vendaval dum canto
que varre todo o pó, re-cria o mundo.

(in Líricas Portuguesas - II volume, selecção e apresentação de Jorge de Sena, 1983)