FERNANDA BOTELHONasceu no Porto em 1926. Formou-se em Filologia Clássica em Coimbra e em Lisboa. Publicou os primeiros poemas na revista Távola Redonda. Da sua bibliografia apenas consta um volume de poesia, tendo-se destacado, principalmente, na prosa, mas também como tradutora.
Morreu hoje.
"(...) a sua poesia árida, seca, sarcástica, antilírica, é notável, como de uma Emily Dickinson vivendo a sua lucidez na desagregação de uma sociedade e de um mundo, aos quais aplica uma desassombrada e cínica visão, que usa insòlitamente as palavras e os símbolos, numa forma concisa, para sugerir afinal uma personalidade segura de si e da sua perspicácia, ìntimamente entregue a uma intensidade sentimental que desdenhosamente recusa exibir-se. (...)"
(Jorge de Sena, in Líricas Portuguesas)
(ver aqui uma entrevista ao Público, em 2003) MIOPIASempre que vejo
o que os meus olhos não queriam
ver
(mas que sabem ser verdade)
É sempre este doer.
Como se a minha sensibilidade
estivesse toda no olhar e ver.
Como se a minha revelação
apenas viesse inteira,
para além da fronteira
do que os meus olhos dão.
Sempre que vejo...
Porque me dói assim?
Porque se desprende em mim
essa mágoa-essência
de surpresa retardada?
A minha consciência
está míope e cansada.
RENOVOQuem falou na eternidade?
(Não espero mais que cinco minutos).
O tempo vai-me ceifando a idade
e aliviando os lutos.
O meu desgosto
foi posto ao lado.
Renasço sempre poderosa
em verso ou prosa,
no berço do sem-cuidado.
(in
Távola Redonda, fascículo 4 - 1 de Março de 1950)
AS COORDENADAS LÍRICASDesviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.
A geométrica forma de meus passos
Procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.
Sozinha já não vou. Apenas fujo
às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
- as minhas coordenadas.
LEGENDAComo quem sente
na legenda do presente
o fim duma história breve,
vou vivendo um sonho intacto
num pesadelo crescente
uma luz fecunda e leve
nos olhos pardos dum gato.
(de
As Coordenadas Líricas, 1951)
LUZA mesurável condição humana,
quanto me exige! Quanto proclama
o seu poder em mim!
Tall submissão nem me redime
nem me liquida.
Não é renúncia sublime
nem carícia retribuída.
Não tenho eira nem beira,
vivo nas dobras da terra
e aceito quanto me dão.
Eis o meu nome: toupeira.
- E o meu olhar se descerra
apenas na escuridão.
(in
Graal, n.º 2)
ELOGIO DO SONOÓ noite das mães-noites - os açoites
da sombria harmonia entre o binómio,
o diálogo e o solitário Orfeu!
Entre um anjo ansioso e um bom demónio,
O binómio sou eu.
Mudos por fim caímos, diagonais
entre dois ais do mais lambido pranto
a regar o sorriso do infecundo.
Solta-se então o vendaval dum canto
que varre todo o pó, re-cria o mundo.
(in
Líricas Portuguesas - II volume, selecção e apresentação de Jorge de Sena, 1983)