1.11.07

[evocando todos os santos]

CRISTINA CAMPO

MISSA ROMANA

I

Inerme como nenhum lírio
no luminoso
sudário
sobe o Calvário
teologal
penetra na sarça
ela crepita há milénios
sempre oculta
na odorosa nuvem da língua.

Curvado por terríveis
ventos
beija em silêncio sagradas feridas
eleva, mostra
puras mãos trespassadas
mendiga paz
entre polegar e indicador
um fio sobre o abismo do Verbo mantém.

Da ossada dos mártires
trituração de alegria
cresce
a raiz de Jessé
desabrocha no cálice abrasado
e na branca lua
onde se cruzam o sangue e
o estandarte
surgindo vacilam seus
joelhos.

Sobre a pedra angular
que estilhaça a morte
eleva-a à altura das lágrimas
e repousa-a
com materno terror
sobre estigmas, esses lábios
que curam
a vida.

Em torno ao pasto
mortal
nas orlas de Deus
silvam serpentes mordem o corporal
nos quatro ângulos do conopeu
retraem-se as folhas
dos céus
fendas danificam os pilares.

Assediados
à porta
marcados pelo cheiro da peste
fingem e vendem com gracejos
a enfermos e disformes
da probática
pia
a sua suave máscara de suplicio.


II

Falcoeiro do Céu
sobre cuja mão levantada
o Eterno Predador investe
ávido de prisões...


III

Onde vai
este Cordeiro
que aos virgens é dado
seguir onde quer que vá
este Cordeiro
que está direito e morto
sobre o livro dos assinalados
ab origine
mundi?

Não se pode nascer mas
pode-se permanecer
inocente.

Onde vai
este Cordeiro
que a nós que o supliciamos não é dado
seguir com os assinalados
nem fugir
mas soluçando suavemente conceber
no escuro seio da mente
usque ad consummationem
mundi?

Não se pode nascer mas
pode-se morrer
inocente.

(de Poemas Dispersos, in O Passo do Adeus, tradução e prefacio de José Tolentino Mendonça, Assírio & Alvim, 2002 - documenta poetica)

31.10.07

[a propósito da passagem de 105 anos]

ADÉLIA PRADO

Agora, ó José


É teu destino, ó José,
a esta hora da tarde,
se encostar na parede,
as mãos para trás.
Teu paletó abotoado
de outro frio te guarda,
enfeita com três botões
tua paciência dura.
A mulher que tens, tão histérica,
tão histórica, desanima.
Mas, ó José, o que fazes?
Passeias no quarteirão
o teu passeio maneiro
e olhas assim e pensas,
o modo de olhar tão pálido.
Por improvável não conta
o que tu sentes, José?
O que te salva da vida
é a vida mesma, ó José,
e o que sobre ela está escrito
a rogo de tua fé:
"No meio do caminho tinha uma pedra"
"Tu és pedra e sobre esta pedra"
A pedra, ó José, a pedra.
Resiste, ó José. Deita, José,
dorme com tua mulher,
gira a aldraba de ferro pesadíssima.
O reino do céu é semelhante a um homem
como você, José.

(de Bagagem, 1976)
[um verso que se ouve por estes dias]


vai desarmar a flor queimada








30.10.07

YVETTE K. CENTENO

VOZES


Vozes
contra as paredes

nessas vozes
não se pode nadar

o fluido é espesso
misto de alga
e de esgoto
destroçar
das paixões

praia
ao fim da tarde

nadando
com a maré vaza
na direcção da rocha
onde os deuses
se escondem

(de Entre Silêncios, Pedra Formosa, 1997 - colecção Arco Imperfeito)

BRITO CAMACHO

«Ali as enxertias são coisa trivial, não umas pequenas enxertias, como fazem os cirurgiões da Europa, mas enxertias do mais largo alcance, e da mais apurada technica.»

(excerto de Pó da Estrada, livraria editora Guimarães & C.ª, 1930)


Passo ao José do Carmo Francisco (aqui ou aqui, tanto faz...), à Lídia, ao Marco, ao Miguel (aqui ou aqui, tanto faz...) e ao Nuno.

Regras:
1. Pegue no livro mais próximo, com mais de 161 páginas – implica aleatoriedade, não tente escolher o livro;
2. Abra o livro na página 161;
3. Na referida página procurar a 5.ª frase completa;
4. Transcreva na íntegra para o seu blogue a frase encontrada;
5. Aumentar, de forma exponencial, a improdutividade, fazendo passar o desafio a mais 5 bloggers à escolha.

29.10.07

EVA CHRISTINA ZELLER

O MAR NÃO CONHECE O MAR


o mar não conhece as profundidades
nenhum azul nem conhece as suas ondas
o mar não é soberbo nem
manso nem amargo
não conhece o sabor do vento nem da espuma
o mar não vê nenhum sol
nem terra nem seixos
o mar não ama o céu
nem a lua
o mar não se conhece

(de Sigo a Água, tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado, Relógio d'Água, 1996)

28.10.07

SALETTE TAVARES

RAJADA


É grande o grande no mar grande e mar
é verde azul cinzento ar
é vida desespero na areia a enterrar
sem terra
só de claro e agreste o meu vagar.
Passado o trilho que o dia me ensinou
passadas dunas tão limpas pelo vento
a sombra me desenha em rente quente
o todo fogo sol que me detém
tangente.
Breves os passos corridos
e perdidos
leves de areia roçando-me na face
vestido o vento
inteira esteira de poeira me desfaço.

(de Quadrada, 1967)