27.10.04

DYLAN THOMAS

POEMA NO SEU ANIVERSÁRIO


Na semente de mostarda do sol,
Junto ao rio caudaloso e à cachoeira do mar
Onde veloz voa o cormorão,
Na sua casa em andas hasteada entre os bicos
E o arandel dos pássaros
No grão de areia deste dia na ladeira da cova da baía
Ele celebra e troça
O lenho à deriva dos seus trinta e cinco ventos tornados idade;
Garças elevam-se e lanceiam.

Debaixo e em redor de si vão
Solhas, gaivotas, com rastos moribundos e frios,
Fazendo o que lhes é dito,
Maçaricos estridentes nas ondas com safios
Lidam nas suas vias para a morte,
E o versejador na sala de longa língua,
Que tange o sino do seu aniversário,
Labuta para a cilada das suas chagas;
Garças, caules de campanário, abençoam.

Na queda da lã de sementes do cardo,
Ele canta caminho à angústia; voa o tentilhão
Nos cursos de garras de falcões
Num céu rapace; pequenos peixes deslizam
Por quelhos e conchas de cidades
De navios naufragados para pastos de lontras. Ele
Na sua casa torta e torturada
E nas espiras cinzeladas do seu ofício avista
Garças, sudários que caminham.

O manto do rio interminável
De vairões volteando a tecer as suas rezas;
E sabe que no mar lá longe,
Ele que moureja para o seu fim acocorado e eterno
Debaixo duma nuvem serpente,
Os golfinhos mergulham de dorso no pó,
As crespas focas raiam para o fundo
A matar e o seu próprio sangue que tinge a maré
Que bem que desliza na boca polida.

Num cavernoso, agitado
Silêncio de onda, o choro branco do ângelus toa.
Trinta e cinco sinos cantam tangidos
Em cicatriz e caveira, naufragados amores seus
Das estrelas cadentes guiados.
E o dia de amanhã chora numa grade cega
Que o terror rasgará em pedaços
Antes dos grilhões rebentarem num martelo em chamas
E o amor escancarar o escuro

E livremente vai perdido
Na famosa luz desconhecida do grande
Deus fabuloso e amado.
O escuro é um caminho e a luz é um lugar,
O céu que nunca foi
Nem nunca será é sempre verdadeiro,
E, nesse vazio de sarça,
Miríades como as amoras nos bosques
Os mortos crescem para a Sua alegria.

No lugar onde poderia errar nu
Com os espíritos da baía em ferradura
Ou os mortos costeiros dos astros,
Medula de águias, raízes de baleias
E quilhas dos gansos bravos,
Com Deus abençoado e incriado e o seu Espírito,
E cada alma um sacerdote Seu,
Logrado e chantre no jovem aprisco do Céu
Ser em tremente paz de nuvem,

Mas o escuro é um longo caminho.
Ele, na terra da noite, sozinho
Com todos os vivos, reza,
Sabe como o foguete do tempo vai soprar
Os ossos para fora das colinas
E os rochedos ceifados sangrar e a sanha
Das últimas águas estilhaçadas coicear
Mastros e peixes para as quietas rápidas estrelas,
Sem fé e até Ele

Que é a luz do velho
Céu em forma de ar onde as almas braveiam
Como cavalos na espuma:
Oh, possa eu chorar a meio da vida com as preces
Das garças druidas e consagradas
A viagem para a ruína que tenho de trilhar,
Madrugueiros barcos retidos em terra,
Mesmo assim, a clamar com a língua delapidada,
Conto em voz alta minhas bênçãos:

Quatro elementos e cinco
Sentidos, e o homem um espírito apaixonado
Enredando-se no vórtice deste lodo
Até ao reino que há-de vir, suave, sino, nimbo
E os perdidos domos ao luar
E o mar que esconde os seus secretos eus
Na funda base negra feita de ossos,
Canção das esferas na carne das conchas,
E sobre todas esta última bênção,

Quanto mais perto me movo
Para a morte, homem só em cascos com rombos,
Mais alto o sol floresce
E o mar retalhado e em ruínas exulta;
E cada onda do caminho
E cada tempestade enfrento, e toda a terra então,
Com fé mais triunfante
Do que sempre houve desde que foi dito o mundo,
Tece a sua manhã de louvor,

Ouço as impetuosas colinas
Erguerem-se festivas e mais viçosas ao cair das bagas
Castanhas e as cotovias do orvalho cantarem
Mais alto no trovão súbito deste maio e quão
Mais arqueadas de anjos cavalgam
As ilhas em fogo com as almas dos homens! Oh,
Mais santas que seus olhos
E meus homens fulgentes nunca mais sozinhos
Enquanto me faço ao mar para morrer.

(tradução de Joaquim Manuel Magalhães, em apêndice a Dylan Thomas - consequência da literatura e do real na sua poesia, Assírio & Alvim, 1982 - o original pode ser visto aqui)

26.10.04

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Há uma certa cegueira vidente no poema e na palavra silenciosa
que o precede e o move. Sem essa parte obscura a palavra
imobilizar-se-ia na evidência da sua visão. Por isso, escrever é
avançar, de ruptura em ruptura, através de um domínio obscuro
onde, a cada passo, se nos depara algo imprevisível. O poema
não reproduz nem designa porque o seu movimento se antecipa à
cristalização dos conceitos e das enunciações póstumas. O seu
objectivo não é o real, mas a energia nascente que incorpora na
sua dinâmica substância. O que se retira ou se retrai é idêntico ao
que se manifesta e se ausenta na sua própria manifestação. Nunca
a palavra é uma doação integral da presença mas o seu horizonte
mantém-se na abertura viva a si própria e ao mundo que a rodeia
no interior do seu círculo inaugural.

(de Relâmpago de nada, Labirinto, 2004)
ANIVERSÁRIOS REDONDOS d'OUTUBRO

dia 17: António Ramos Rosa fez 80 anos - assinalado pelo Mil Folhas desta semana, com Inéditos e um texto de Fernando Pinto do Amaral;

dia 21: 150 anos do nascimento de Jean-Arthur Rimbaud - assinalado pelo Quartzo, que nos informa que existe um site oficial da efeméride;

amanhã: 90 anos do nascimento de Dylan Thomas.