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21.10.08


NICOLAU SAIÃO

HOMENAGEM A JACK, O ESTRIPADOR


O teu sorriso fugaz ocupa o espaço
na aresta furtiva, no lance bem ritmado
e liga infinitamente
alma e sombra de
criatura.

Um deus em que tudo
é distante. Vivemos, bem verdade é
sempre a despedir-nos: basta apenas
exagerar um bocadinho
- e aí está ela, a rica melancolia

Com fato de cheviote? Talvez. Onde se lê futuro
deve ler-se presente: vísceras, uma árvore, o olhar
triunfante do anjo. O nosso ser é para nós
um vivo que a nostalgia transformou
gravemente em seus braços
calmos e perturbados.

Há centenas de bolsos. E navalhinhas mil. Cruzando
o ar uma loira, uma ruiva, uma morena
confundem as linhas e os meredianos.
Serenos são os séculos, como insectos
no limiar da oculta porta: e por dentro
cabeças abanando e um que outro odor
de um doce ovário atónito.

O viandante traz dos tempos velhas coisas
até que o som de um violino faz estalar
anos e falangetas. Saibamos
deixar-nos descansar, que o Mundo
morre para ser objecto
ou silêncio.

Entre as crustas da carne subsistem
antebraços, continentes, colhões – os desígnios
que nem tu – surpresa! – descascar poderias
em qualquer viela esconsa

Pobre animal liberto
e indiferente

eternamente exposto a fulgores e ilusões.

(de Flauta de Pan, edições Colibri, 1998)

13.10.08

[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia I]

FRANCISCO BUGALHO

Dois Meninos


Meu menino canta, canta
Uma canção que é ele só que entende
E que o faz sorrir.

Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas.

As cinco pedrinhas são mundos na mão.
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais…

Meu menino d’olhos verdes como as águas
Não sabe falar,
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia.

Meu menino ama os cães,
Os gatos, as aves e os galos,
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim,
Enlevado, a olhá-los.

E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino…

(de Canções de entre Céu e Terra, 1940)

Sobre este poema, um belíssimo comentário de Nicolau Saião.

19.2.04

[na senda das excelentes contratações do Quartzo]

NICOLAU SAIÃO

Nasceu em Monforte do Alentejo, em 1946.
É também pintor e publicista. Colabora com alguma imprensa local.
Desde há dias é também colaborador deste excelente blog.


HOMEM

Casas novas, número vinte e dois
diz o guarda-fiscal reformado. A boca
estampa no vidro
um desenho recortado. Um pulôver branco
- que bafo! - adeja, desconfiado. É a flor do Inverno
ruga que pouco a pouco chega. Casas novas
casas novas: bilhete humano rasgado.

Foi por esse caminho que passaram
Baco, Nitzsche, Colombo e Abu-Rahman?


AS LUZES

Vagamente inquietos
sobre a secretária
como anões cercados de lodo
como insectos enormes e ofegantes

iluminados flutuam

e violentam a carne
das praias quando amanhece

e a trovoada aparece
com seu sexo de safira

Na invenção mais mortífera
que o nevoeiro contém
lentamente se despenham

incorruptos

Os poemas esqueceram
revoltaram-se e são homens
com o seu hálito de arsénico

como amantes invisíveis.

(de Os Objectos Inquietantes, editorial Caminho, 1992)


DOIS

O tempo

O tempo, quando um grande vazio de repente finda
como em obras de paixão/ a porta que bate e já começa
a deixar a marca leve, quase de acaso para fora
das presenças que anos futuros não mais terão por si
mesmos/ contam eles, sobre outra forma conseguida
achada, que é como quem diz, numa revista destroçada

Para depois

Dizemos todos/ como estradas sem ninguém, como gaiolas
onde os pássaros para antes deixam sua imagem fotografada
e a nossa memória tem de súbito poucos poucos meses
mas mesmo assim revive sobrevive/ como um assobio

E por isso para fora a voz é uma estrada
uma folha que paira/ ou rua para dentro doutro momento
como uma criança soprada oscilante ressoando
tal qual para fora a infinita mágoa
de uma lembrança encontrada depois perdida/ dizem todos.


RETRATO

Sim, elas têm nome: metade
calando-se, metade
subindo
escuras como cascas
ou como vidros quebrados.

Terça-feira, quarta-feira
- perfis abandonados
números e acordes
inúteis.

Chamam-lhes o que preciso
fôr: nenhum receio obriga
a metade que são
ausente
a qualquer coisa dor

fundo nos ossos.


VAN GOGH

Com um tiro, Vicente?
Entre a casa e o sol?
Então para quê
o vermelho ante o céu?
E o inferno para tanta gente?
E a noite tremendo
de frio?
Nanja eu!
Prefiro comer um chapéu
um caracol

ou a capa do meu tio.

(de Flauta de Pan, edições Colibri, 1998)