1.4.06

AUTOR DESCONHECIDO


L'homme au verre de vin, ca. 1640
óleo sobre tela
44 cm x 63 cm
Paris, Museu do Louvre


VASCO GRAÇA MOURA

l'homme au verre de vin

numa sala do louvre dedicada à
pintura espanhola há um quadro
atribuído à escola portuguesa
de quatrocentos. é o

homem do copo de vinho, ou, dir-se-ia
do copo de solidão; e é possível
que seja flamengo e triste. mas tomemos
a origem indicada como boa

para esse homem que vai entrar na noite,
gravemente na noite, como numa
parda natureza. eu nunca pude
um slide dessa imagem,

um bilhete postal, ou quaisquer dados
para situar aquela estranha placidez
de quem vai encontrar no vinho umas verdades, de
alguém que vou visitar de vez em quando,

para beber um copo em companhia.
é possível que fosse na flandres
algum feitor discreto e rico ou que em lisboa fosse
o português cultivado melancólico,

segurando uma alcachofra minuciosa
que o pintor depois terá mudado
para tornar mais intenso o sentimento
ou mais real a sua digna sede.

(de a sombra das figuras, 1985)


GÉRARD CASTELLO-LOPES


(in Em demanda de Moura, Quetzal editores, 2000)

31.3.06

CARLOS BESSA

palavras de um portfólio


Do lado esquerdo e à janela, por favor.
Dois adultos, um bebé e uma criança.
O número de passageiros frequente é...
Vamos ao bar tomar qualquer coisa?

Subir ao número certo, depositar
a bagagem de mão e apertar cada
cinto com um sorriso. Sim, isto não é poesia,
não é senão rotina, sem metro, sem rima.

Algumas horas mais tarde, de novo no solo,
o sorriso é outro e atrapalhados com as
malas o táxi leva-os a novo destino
onde se bebe e fala com a emoção

de um capítulo de que há muito se adivinha
o epilogo, embora isto também não seja ciência.

(de Em partes iguais, Assírio & Alvim, 2004)

30.3.06

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

QUINTO OLHAR


Olha o vidro - vê só uma sombra
automóveis e peões na rua, a luz,
a reflexão dos sonhos no azul.

Não se levanta - fica logo presa
e prende numa esfera (talvez) azul
o peso da voz que não a revela.

Não revela nem persegue - só vê
permanece no registo (nada mais)
o sufocado desenho da palavra.

Quem reparar bem não lhe fixa nada
- perde todo o tempo no olhar
e enche a tarde com a sua imagem.

(de poemas do olhar, in 1983 um resumo, jornal "O Mirante", 1991)

29.3.06

[dia da TdA]

ARMANDO SILVA CARVALHO

UM DIA DA TERRA


Escreveste um dia que te levantavas
Quando o desgosto já não era alegórico
E te sufocavam os seus dedos
Devoradores.
Hoje antes de me deitar
Ouço o locutor dizer que a Terra
Será sempre território exclusivo do sol,
Do ar, da água.

Este planeta onde tenho a cama
E os mais instrumentos
Que me suportam o sono e outras formas
De esquecer os dias
Dá-me uma noite calma a ouvir
A voz do mar
Zeladora da minha solidão que sinto
Ligada à sua.

Não me apetece dormir.
Quero ficar de barriga para o céu
À minha volta
Quando o ar não me falta
E água me embala com o seu coro enrouquecido
De navegantes mortos
Com as suas mãos medonhas suspensas
Sobre as rochas
Como as duma velha ama.

Decido-me a fazer companhia
À Terra
E esqueço (sem esquecer)
O cruel fim dos milhares de indefesos,
As chacinas diárias, o ruído do ódio,
Do mal que grita
À minha cabeceira a minutada força
Do destino humano
Traduzido nas suas alegorias
Democratas.

Que belo rendez-vous me propõe
A torpe insónia
Nesta noite de Juízo Íntimo.
Tratar por tu severos astronautas
As emoções da Terra derramadas em gráficos,
O falso azul, os buracos negros,
A luz indiferente das estrelas,
O livro do universo.

E como tu dizias,
O domínio da vida sobre a ideia da morte.
A materia de deus deitada a meu lado
No branco do lençol.

9.9.04

(de Sol a Sol, Assírio & Alvim, 2005)

26.3.06

OCTAVIO PAZ

MAIÚSCULA


Flameja o esganicristério da alva. Primeiro ovo, primeiro bicar, carnificina e alvoroço! Voam penas, abrem-se asas, incham velas, mergulham remos na madrugada. Ah, luz sem brida, encabritada luz primeira. Desmoronamentos de cristais irrompem do monte, tímbales rompetímpanos quebram-se à minha frente.
Não sabe a nada, não cheira a nada a alvorada, a menina cega às apalpadelas pelas ruas, a menina ainda sem nome, ainda sem rosto. Chega, avança, titubeia, vai pelos corredores. Deixa um rasto de rumores que abrem os olhos. Perde-se nela mesma. E o dia esmaga com o grande pé colérico uma estrela pequena.

(de águia ou sol?, tradução de Rui Rosado, Hiena editora, 1985 - colecção Cão Vagabundo)
Ainda a propósito, faço ligação para dois textos que antes aqui coloquei: um de Jorge de Sena e outro de David Mourão-Ferreira.
FERNANDO PESSOA

(...) Para que qualquer impressão possa ser convertida em matéria de arte, é mister que, primeiro, se transmute em impressão, não parcialmente, senão inteiramente, intellectual. E «intellectual» quere dizer, não da intelligencia como expressão superior da personalidade, mas da intelligencia como expressão abstracta d'ella. Em outras, e mais simples, palavras: só quando o individuo se converte, pela intelligencia, em um pequeno universo, tem materia, na impressão, em que assim se converte, para fazer o que chamamos arte.
O que sentimos é sómente o que sentimos. O que pensamos é sómente o que pensamos. Porém o que, sentido ou pensado, novamente pensamos como outrem - é isso que se transmuta naturalmente em arte, e, esfriando, attinge a forma.
Não confie no que sente ou pensa, senão quando houver deixado de o sentir ou pensar. Assim utilizará, em proveito seu e de todos, a sua sensibilidade, naturalmente predisposta para esse aproveitamento.

(excertos de uma carta a Adolfo Casais Monteiro, datada de 11 de Janeiro de 1930)
MAX JACOB

A emoção artística não é nem um acto sensorial nem um acto sentimental; senão, bastaria que a natureza no-la desse. A arte existe, por conseguinte corresponde a uma necessidade: a arte é propriamente uma distracção. Não me engano: foi a teoria quem nos deu um maravilhoso povo de heróis, de poderosas evocações de ambiências em que se satisfazem as legítimas curiosidades e as aspirações dos burgueses prisioneiros de si mesmos. Mas é preciso dar à palavra distracção uma significação ainda mais ampla. Uma obra de arte é uma força que atrai, que absorve as forças disponíveis daquele que dela se acerca. Há aqui algo de semelhante a um casamento e o amador desempenha o papel de mulher. Tem necessidade de ser preso e retido por uma vontade. A vontade desempenha portanto, na criação, o papel principal, o resto não passa de um isco posto diante da armadilha. A vontade só pode exercer-se na escolha dos meios, porque a obra de arte mais não é que um conjunto de meios, e assim chegamos a poder aplicar à obra de arte a definição que eu dava ao estilo: a arte é a vontade de cada um se exteriorizar através dos meios que tenha escolhido: as duas definições coincidem e a arte mais não é que o estilo. O estilo é considerado aqui como o a execução dos materiais e como a composição do conjunto, não como a língua do escritor. E eu concluo que a emoção artística é o efeito de uma actividade pensante sobre uma actividade pensada. Sirvo-me contrariado desta palavra «pensante», pois estou convencido de que a emoção artística cessa no momento em que intervém a análise e o pensamento: uma coisa é fazer reflectir e outra é dar a emoção do belo. Identifico o pensamento com o isco da armadilha.
Quanto maior for a actividade do sujeito, mais aumentará a emoção dada pelo objecto; a obra de arte deve, portanto, afastar-se do sujeito. É por essa razão que deve ser situada. Poderia deparar-se-nos aqui a teoria de Baudelaire sobre a surpresa: trata-se de uma teoria um tanto grosseira. Baudelaire entendia a palavra «distracção» no seu sentido mais corriqueiro. Surpreender é pouco, é necessário transplantar. A surpresa encanta e impede a verdadeira criação: como ser encantador a não ser posteriormente, depois de a obra estar situada e ter estilo.
Distingamos o estilo de uma obra, da sua situação. O estilo ou vontade cria, isto é, separa. A situação afasta, isto é, incita à emoção artística; reconhece-se que uma obra tem estilo por dar a sensação de coisa fechada; reconhece-se que ela está situada pelo pequeno choque que ela provoca, ou ainda pela aura que a rodeia, pela atmosfera especial em que se move. Certas obras de Flaubert têm estilo; nenhuma é situada. O teatro de Musset é situado e não tem muito estilo. A obra de Mallarmé é o tipo da obra situada: se Mallarmé não fosse empolado e obscuro, seria um grande clássico. Rimbaud não tem estilo nem situação: tem a surpresa baldelairiana; é o triunfo da desordem romântica.
(...)
Uma obra de arte vale por si mesma e não pelas confrontações que dela se possam fazer com a realidade. Do cinematógrafo, diz-se «É assim mesmo!» Perante um objecto de arte, diz-se: «Que harmonia! Que solidez! Que elegância! Que pureza!» (...)

(excertos do Prefácio de 1916 a O Copo dos Dados, tradução de Luiza Neto Jorge, editorial Estampa, 1974)
HORÁCIO

(...)
Com a grande parte dos poetas, ó pai e ó filhos dignos de tal pai, deixamos enganar-nos por falsas aparências de verdade: forcejo por ser breve, em obscuro me torno; a quem procura o estilo polido, faltam a força e o calor, e todo o que se propõe atingir o sublime, descamba no empolado. Acaba, todavia, rastejando pelo chão o demasiado cauto, o que tem medo da procela; mas quem deseje variar prodigiosamente um tema uno, pintará golfinhos nas florestas e javalis nas ondas do mar. Procurando fugir do engano se cai no erro, caso não se possua a arte. Nas imediações da escola Emília, o mais ínfimo dos escultores moldará unhas de bronze e até nele imitará cabelos sedosos, mas será infeliz no acabamento da obra por não saber criar um todo. Se algo desejasse compor, não quereria assemelhar-se a esse, do mesmo modo que não me agradaria possuir horrível nariz, ainda que meus olhos negros e negros cabelos fossem dignos de admiração.
Vós que escreveis, escolhei matéria à altura das vossas forças e pesai no espírito longamente que coisas vossos ombros bem carregam e as que eles não podem suportar. A quem escolher assunto de acordo com as suas possibilidades nunca faltará eloquência nem tão-pouco ordem luzida.
A virtude e beleza da ordem consistirão - ou eu me engano - em que se diga imediatamente o que tem de ser dito, pondo muitos pormenores de lado e omitindo-os de momento: que o autor do poema prometido, ora escolha este aspecto, ora despreze aquele.
No arranjo das palavras deverás também ser subtil e cauteloso e magnificamente dirás se, por engenhosa combinação, transformares em novidades as palavras mais correntes. Se porventura for necessário dar a conhecer coisas ignoradas, com vocábulos recém-criados, e formar palavras nunca ouvidas pelos Cetegos cintados, podes fazê-lo e licença mesmo te é dada, desde que a tomes com discrição. Assim, palavras, há pouco forjadas, em breve terão ganho largo crédito, se, com parcimónia, forem tiradas de fonte grega. Por que motivo, permitem os Romanos a Plauto e a Cecílio o que recusam a Virgílio e a Vário? Se a língua de Catão e de Énio, produzindo novas palavras, enriqueceu o idioma pátrio, com que razão hão-de malsinar-me caso eu puder acrescentar-lhe algumas? Foi lícito e lícito sempre será lançar um vocábulo cunhado com o selo da modernidade. Assim como as florestas mudam de folhas no declinar dos anos, e só as folhas velhas caem, assim também cai em desuso a velha geração de palavras e, à maneira dos jovens, as que há pouco nasceram em breve florescem e ganham vigor. Nós e as nossas obras estamos fadados para a morte! (...)

(excerto de Arte Poética, tradução de R. M. Rosado Fernandes, editorial Inquérito, 1984)
A propósito do debate (mais do que 'discussão' ou 'polémica'), iniciado por Jorge Melícias com as "breves notas para uma poética da terminologia" e continuado por João Luís Barreto Guimarães (e pelos utentes das suas caixas de comentários), coloco a seguir três textos que, julgo eu, poderão fazer alguma luz sobre o assunto.