9.9.05

WILLIAM BRONK

A IMPRESSÃO

Tem-se a impressão de que tudo está a chegar
ao fim. Não, não é isso. Tem-se a impressão
que é como uma guerra em que a última batalha
é combatida muito depois do armistício
ter sido declarado. A iminência liga-nos
a uma desgraça passada. Olha-se para trás,
para um tempo, qualquer tempo, qualquer coisa
que já aconteceu. Olha, ainda estamos aqui,
mas repara que o nada do momento aconteceu
há muito, um tempo, tanto quanto se pode saber,
que não coincide com o tempo em que isso
aconteceu. Houve alguma vez esse tempo?
Outrora, deve ter havido. Quando acabará?

A METONÍMIA COMO ACESSO AO MUNDO REAL

Ou o que se sente deste mundo é o "que"
apenas deste mundo, ou o "que" do qual,
de vários possíveis mundos - que "que"?
- alguma coisa do que se sente pode ser
verdade, pode ser o mundo, o que é,
o que se sente. Quanto ao resto,
tréguas são possíveis, a tolerância
dos viajantes, comer pratos estrangeiros,
tentar palavras que distorcem a língua,
sentir esse tempo e esse lugar,
sem pensar que esse é o mundo real.

Certo, todos os relógios nos dão a hora
local; certo, "aqui" é qualquer lugar
onde se limita e se preenche um espaço;
certo, nós fazemos um mundo: mas alguma
coisa existe nele, está nele contida,
alguma coisa real, algo que se possa sentir?
Uma vez, numa cidade bloqueada e cheia,
vi a luz bater bem fundo no vazio da rua,
palpável, azul, como se tivesse vindo,
digamos, do mar, uma pureza de espaço.

(tradução de Silva Carvalho, in Ícones, Quatro Elementos editores, 1994)

4.9.05

FERNANDO GUERREIRO

A câmara clara


Desenganem-se os crédulos, a poesia não é um espelho
nem nela o sujeito passa por um processo de revelação
compatível com o impressionismo mimético tão comum
nas fotografias. Se não conseguimos escapar à mecânica
de arrasto pela qual um indivíduo, mal pega na caneta,
passa para a palavra, no entanto, talvez seja pela iconicidade -
efeito de relevo na linguagem, pelo próprio recorte das palavras
na sua espessura semântica produzido - que a estranheza
da poesia melhor nos surpreende e conjuga. Poder-se-á
pela palavra contrariar o carácter nostálgico da arte?,
o que nela existe de evocação de uma presença antiga
e erodida? Traindo-nos, a poesia ainda nos autoriza
uma forma branda de recusa: a dos frutos que se oferecem
aos favores do clima sem esperar o consolo de uma mão
que os proteja da sombra em que os contornos, na dúvida, se retiram.

(de A Balada de Liverpool e Bruxelas, in Bumerangue 04 - colecção Guarda-Rios)
HISAKI MATSUURA

A gaiola

Vacuidade
Vazio em forma de ovo
Num casaco silêncio fora do tempo
Colecciono aí
Raros, vivos minerais
Que agradam aos adultos garotos
Um bandolim (corpo feminino sem umbigo, cordas partidas)
Um morango (com o seu cálice)
Uma pulseira (de coral, da tia hipermetrope)
Um arranha-céus (maço de cigarros, Lua)

Um hipopótamo (enorme tristeza escorregadia)
Um bombom com whisky (homicida)
- Por exemplo
A estrela do mar seca apanhada na praia
Cada vez mais pequena
Um asterisco cada vez mais pequeno
Que se perderá certamente salvo precaução a tomar
Que desaparecerá numa serapilheira como pó
Ou como um ponto luminoso sobre a página de um livro
- Ou ainda
Uma silhueta sem vida que oscila vagamente
Uma espécie de sombra fútil caída
Sobre a superfície agitada da porta de madeira que range
Sarjeta triste
Bric-á-brac de todos e de todas as cores
Sem peso
A pôr indiferentemente na ordem da crónica
Passarei o meu tempo a dispô-los
De maneira bela e agradável
Uma selha de areia sem areia
Uma borboleta sem asas mica e geada de uma manhã de Verão
Contudo na noite em que a tempestade se aproxima
Posso contentar-me
Aconchegado a um canto do pomar
Sobre a colina de trás sem vento
Nem grito de corvos olho
Os grãos de ervilhas cair
As costas ao vento
É qualquer coisa que me falta e submerge
Pode-se apenas suportar?
Gaiola portátil do "eterno"

(tradução de Adília Lopes, a partir de uma versão francesa, in Bumerangue 04)