4.3.06

[outros melros XXXII]

JÚLIO HENRIQUES

Vão os pássaros crivando
o ar de sons,
moradores das árvores
que há séculos
perduram: populosas cidades
onde pulula
o corvo, o melro, o rouxinol,
refúgios musicais
cuja sombra atinge
a criança despida
e a piscina sangrenta
onde nadou.

(de Modas & Bordados d'Alice Corinde, Fenda edições, 1995)

3.3.06

[para uma antologia de bicicletas - 3]

HEINRICH BÖLL

IX


Sim, também a escola. Apertou o frio, a rigidez, também sob o ponto de vista económico, e vivíamos ao encontro da guerra. Restava muita coisa: a lealdade dos pais e dos irmãos, dos amigos, também dos que há muito estavam integrados em organizações nazis - restava a bicicleta, insubstituível, quase sagrada, esse elegante veiculo de mobilidade, companheiro da fuga, de fácil construção, digno de muitos hinos e - como se verificou o mais tardar em 1945 - o único meio de movimentação mecânico, mas valioso e de confiança. Do que não precisa um automóvel? É pesado, bem vistas as coisas, dependente de mil e uma ninharias, já para não falar da gasolina, das estradas. Onde é que se consegue ir com uma bicicleta - e que ninguém esqueça: a guerra do Vietname foi ganha com bicicletas contra tanques e aviões. Remendos, bomba de ar, luz - bagagem leve, quase nenhuma - e o que é que não se pode pôr em cima de uma bicicleta, carregando-a bem?
[...]

(excerto de O que é que vai ser do rapaz?, tradução de Maria Adélia Silva Melo, Difel, 1987)

1.3.06

[um poeta de quem não se pode celebrar a data de nascimento este ano]

YORGOS SEFERIS

NARRAÇÃO


Este homem caminha a chorar
ninguém sabe dizer porquê
às vezes pensam que são os amores perdidos
como aqueles que tanto nos atormentam
à beira-mar no verão com os gramofones.

A outra gente cuida dos seus trabalhos
papéis intermináveis crianças que crescem, mulheres
com dificuldades em envelhecer
ele tem dois olhos como papoilas
como primaveris papoilas cortadas
e duas pequenas fontes na cavidade dos olhos.

Caminha pelas estradas nunca se deita
galgando pequenos quadrados no dorso da terra
máquina de um tormento infindo
o qual acabou por não ter importância.

Alguns outros ouviram-no falar
sozinho enquanto passava
de espelhos quebrados anos antes
de figuras quebradas dentro dos espelhos
que já ninguém pode juntar.
Outros ouviram-no dizer do sono
imagens do horror no limiar do sono
rostos insuportáveis de ternura.

Habituámo-nos a ele bem arranjado e tranquilo
acontece apenas que caminha a chorar continuamente
como os salgueiros à beira do rio que vês do comboio
quando acordas mal disposto numa alba cheia de nuvens.

Habituámo-nos a ele não representa nada
como todas as coisas às quais vocês se habituaram
e falo-vos dele por porque não encontro
nada a que vocês não estejam habituados;
as minhas vénias.

(tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis, in Poemas Escolhidos, Relógio d'Água, 1993 - original de Diário de Bordo I, 1940)

28.2.06

GREGÓRIO DE MATTOS

«Descreve a confusão do festejo do entrudo»


Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas.

Das janelas com tanhos dar nas gentes,
A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo.

Não perdoar arroz, nem cuzcuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tijelas,
Estas as festas são do Santo Entrudo.

(in Se Souberas Falar Também Falaras - Antologia Poética, organização de Gilberto Mendonça Teles, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989)

26.2.06

FERNANDO ECHEVARRÍA

* * *


Por fim, era a lavoura que lhe retinha os anos.
Do jeito de os reter sobressaía
uma eira de luz. Aberta ao campo
de ver, quem sabe que compaixão antiga.
Ou, então, instalava-se-lhe um páramo
de nitidez longínqua
ao fundo da cegueira. Uma cegueira a quanto,
estando perto, o recolhia ainda
para um recuo de distracção sagrado
onde ficava a difundir-se a vista.
E, ao mesmo tempo, recrudescia o estado
de inteligência. Vinha
reconhecer-se no objecto. E o acto
do reconhecimento repetia
o mundo em todo o seu esplendor abstracto,
que era o concreto a alicerçar-se em vida.
Era o momento em que a lavoura, os pâmpanos,
e mesmo a canícula da quinta
lhe retinham a tez, a luz dos anos.
E aquele recuo de antevisão activa.

(in Literatura Portuguesa e Brasileira / Ano 2000, organização de João Almino e Arnaldo Saraiva, Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 2000)