17.12.11


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


PRANTO PELO INFANTE D. PEDRO DAS SETE PARTIDAS
(poema escrito na noite de 17-12-1961, e interrompido pela notícia da entrada dos soldados indianos em Goa)

Nunca choraremos bastante nem com pranto
Assaz amargo e forte
Aquele que fundou glória e grandeza
E recebeu em paga insulto e morte


PRANTO PELO DIA DE HOJE

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas


(de Livro Sexto, 1962)

MANUEL DE FREITAS


TAKI- TALÁ

para o Jorge

Manhã ká tem dia, para
estes corpos que dançaram anos
e derrotas, na fome cantável das ilhas.
Souberam, melhor do que ninguém,
o preço imediato do futuro que
disfarçam, agora mesmo, de alegria.

E rodopiam, pesados, rente
à madeira das paredes e
ao rumor estrangeiro dos eléctricos.
Já não existem, talvez,
as crianças que na fotografia
a preto e branco brincam sem morte
pela praia — pequeno país que os rostos,
as canções e o álcool tornaram
desmedido. B(e)leza adivinhada
no copo que encontra o chão
e gosta, connosco, de cair.

Mas tu, meu amigo, finges destoar
desta música de latas e violas
rombas, mornas cheias da vida
que nos foge. Essa incompreensível
saudade, sodade — de quando não
fomos felizes. Mar à volta, resignado.

E falas, soletras grogue e cerveja.
Convocas demoradamente
os autores franceses que mais leste
— tudo o que procuro esquecer
contigo, num país mais próximo
daquilo a que por vício chamo
às vezes coração, estrela d'nada.

Porque a música, Jorge, é a única
razão que nos sobra. E a ela apenas
bebemos, com um sorriso grande
a perder-se no rosto que passou já

para sempre. À tua.


(de Cretcheu Futebol Clube, Assírio & Alvim, 2006)

16.12.11


LÊDO IVO


ALÉM DO PASSAPORTE

A noite dá a sua lição de universo: as estrêlas caem. Suspensas no ar vazio, elas deslizam no céu negro, fulgem rápidas, desintegram-se. Mas êsses acidentes celestes não exprimem desordem ou fadiga. Estão inscritos na retórica do cosmo, onde tudo é ordem e rigor.

O tempo é uma mentira das êstrelas. Viajante, não sei onde estou, nem mesmo se estou. Na terra desprezada pelo estrondo rouco do jato, as fronteiras voam e os fusos horários zombam da ficção local dos relógios. E, entre o sono e a vigília, contemplo nuvens imensamente brancas no céu escuro, celeiro das estações.

De súbito, surgem debaixo das estrelas as ocasionais constelações terrestres: ilhas criolas, paraísos explosivos que se espraiam, no mar espumoso, como fragmentos de um continente esfarelado.

Banidas as estrelas, a manhã ocupa o céu e o mar. O leve frêmito vertiginoso anuncia que o avião vai descendo de seu abismo às avessas. Plea.se fasten seat. Um farol numa ilha e uma gaivota são os primeiros sinais da Terra. E ambos reiteram ao sol pálido o vigor cansativo dos símbolos.

Desembarco e é outono em Nova Iorque.



OUTONO EM WASHINGTON

Uma chuva de fôlhas douradas
cai e espanta os esquilos de Washington
que não podem catar suas nozes
sem que não sejam incomodados.

Insólito aguaceiro de dólares
atrapalha as pombas que passeiam
entre os sapatos dos intocáveis
e talvez gripados milionários.

O estrondeio dos aviões a jato
estilhaça nos ares de estanho
os direitos civis dos pardais
em vôo do Obelisco ao Potomac.

E o turbilhão de vento e folhagem
crispa a orquídea na loja de fôres
entre o Bank of America e a noite
nos abrigos contra a bomba atômica.

Uma tempestade de corn-flakes
cai sobre as moças em flor que vão
aos psiquiatras perguntar como
lidar com as máquinas do amor.

Chuva de apartes no Capitólio.
Republicanos e democratas
dão ao foguete chamado Apolo
um prazo para chegar à Lua.

Um anjo de goma e pepsi-cola
faz o pedestre apressar a passo
nas avenidas incandescentes
de olhos de vidro inquebrável e aço.

Na poderosa e marmórea Washington
cheia de templos greco-latinos
só a borracha da noite de outono
apaga as garatujas dos homens.



NOVA IORQUE

Como é bela a América, o país das gaivotas!

Do meu quarto de hotel, vejo os arcos do mundo
e as bandeiras de todos os navios.
Môças caminham sòzinhas no dia fluorescente.
A florista negra sorri entre as camélias.


(da secção América, de Estação Central, 2ª edição: edições Orfeu, 1968))

14.12.11


ERICH FRIED


POEMA MILITANTE

Lembro-me
da minha cólera
e da minha procura
das palavras exactas
para a minha cólera
da última correcção
antes de passar a limpo
da leitura em voz alta só para mim
e por fim da minha
satisfação
que veio pôr termo à minha cólera

E permito-me esquecer
como em vão tacteei
para agarrar as folhas brancas
e tive medo
porque os meus dedos
estão a tornar-se mais desajeitados
e porque o papel químico
me caiu ao chão
antes de passar a limpo
e fiquei tonto
quando o apanhei


PERGUNTAS DE UM POETA MILITANTE

De quanto tempo precisarão vocês
para deixarem
de se indignar
com o que eu digo?

E nessa altura ainda cá estarei
para o dizer?
E será útil ainda
que se diga?

Não será então demasiado incompreensível
ou demasiado evidente?
E não repetirei então como uma gralha:
«Foi o que eu sempre disse?»


(de 100 Poemas sem Pátria, tradução deste poema de João Barrento, publicações Dom Quixote, 1979 - Poesia Século XX)