19.5.18

MARIA VELHO DA COSTA


DESESCRITA

Quando o disserem calo ou farta brotoeja
cardo sem gosto e arremedo velho
tão serôdio apoucar de outros mais hábeis
ou por tão burilada terem sua arte
ou por sofrentes mais no engenho dela,
hei-de guardá-lo meu por apara da gesta
que todos tentamos por modesta
ao pegar das palavras todas gastas
e pôr-me com mais força a ver da giesta
e do rumor das rugas dos que passam
que para isso estou,
bem mais que no contá-lo e dividi-lo.
Por isso não se afina entendimento lato
nem maestria mais ao escrito e trato:
são tantos os instantes a cuidar pla rama e rua
que só fica o que resta
fresta
cantata rota e rouca
entre o escrito e a estória.


(de desescrita, edição da autora/Afrontamento, 1973)

13.5.18


SHAHD WADI


Os versos seguintes do fecho do poema de Suheir Hammad cantam justamente esta presença e insistência em narrar a memória palestiniana e em recriá-la. Herdamos a memória de um ramo de uma oliveira palestiniana que está mesmo dentro do nosso corpo, mas tossimos este ramo na forma de um poema. Todas as histórias e símbolos que estão na memória palestiniana estão reconfigurados através da arte e desta vez esta pós-memória vai ficar, pois tornou-se numa memória física: um objeto de arte. A nova memória transformou-se num poema e numa kafye palestiniana, muito bem costurada, e ambos contam as nossas histórias de vida do passado e do presente (HAMMAD, Suheir (2010) Born Palestinian Born Black & The Gaza Suit, Brooklyn: UpSet Press):

agora
eu sou a filha
a cuspir o ramo de oliveira
o filho reconstruindo a nação
o pai a reconstruir-se
eu sou a mãe
a cerzir as nossas histórias em kafiyes
cerzidos à nossa terra
de lágrimas e sangrar
por anos e por amor
cirzo a história
phalesteen
num kafiye
que não se desmancha nunca

Comentando os versos de Suheir Hammad, abu-Lughob & Sa’adi defendem, como vimos atrás, que é através da poesia, dos filmes e de outras formas artísticas que se opera o ato do testemunho de uma história que não é só sua – das gerações nascidas já no exílio – mas também a dos pais e avós, mantendo assim viva a memória coletiva. Suheir Hammad começa o poema com “now”, que é como quem diz: agora somos nós, é a altura desta geração contar a historia palestiniana, à nossa maneira, agora. Através destes versos de RAP cheios de raiva, Suheir Hammad torna-se o filho, a mãe, o pai que construíram a história e construíram a nação, mas sobretudo Suheir Hammad/eu/nós somos “a filha / a cuspir / o ramo de oliveira”. Quando abrimos a boca para contar uma história, qualquer história, tossimos do nosso corpo um ramo de oliveira, tossimos a história palestiniana. Trata-se de uma história bordada, escrita, pintada, cantada e dançada, uma história nossa de vida coletiva e pessoal que sai do nosso corpo, sem esforço, exatamente como respirar.

(excerto do capítulo III de Corpos na Trouxa: Histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio, edições Almedina, 2017; omito aqui o texto original do poema, em inglês)