27.4.06

SAMUEL BECKETT

CASCANDO


1

fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado

perguntando se não será melhor abortar que ser estéril

as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do que nunca

com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas


2

a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

palavras rançosas a resolver outra vez no coração
amor amor amor pancada de velha batedeira
pilando o sono inalterável
das palavras

aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir

eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem


3

a não ser que te amem

(tradução de Miguel Esteves Cardoso in As Escadas não têm Degraus 3, livros Cotovia - Março de 1990)
JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

19


vamos então falar de arvores antigas abrigos e
outros ventos. olá: diz-me o teu nome (se quiseres)
tenho dois ou três pensamentos (nunca mais que)
penso já em escrever o romance das brisas húmidas.

uma vez li um poeta que dava vida aos castelos
ensinou-me: pequenos cheiros à margem dos
sentidos não te prendas à noite (a visão mais
perfeita do mar é tomada do cimo das falésias).

queria agora acrescentar-me a ti mas (sabes?:)
faço destas linhas a eternidade algo assim
como o diálogo (nosso) entre o corpo e o riso

resta ficar dentro dos dias. é verdade: de que
me querias falar? perdoa mas a manhã está-se
a esgotar (não tenho tempo: a perder)

(de Há Violinos na Tribo, 1989)

25.4.06

NIKIAS SKAPINAKIS


Declacroix no 25 de Abril em Atenas, 1975
óleo Sobre Tela
235 cm x 145 cm
Galeria Fernando Santos

JOSÉ GOMES FERREIRA

XXVIII

(Comício.)

Tudo começa na boca
- ao princípio era o verbo -
combinação de palavras com o sangue.

Discursos, discursos, discursos...

Palavras com fogo ritual.

Palavras com mãos que empurram os homens,
abrem abismos,
estrangulam,
deitam chumbo derretido nas chagas,
magoam de existir.

Dêem-e palavras. Tomem palavras...
Palavras não faltam, já tão velhas que parecem novas,
recém-nascidas com as mesmas raízes
ignoradas.

É esse o milagre:
nascer todos os dias
nas bocas esquecidas
dos fios de prumo.

Palavras
- silêncio que agride,
os passos do fumo.

XXIX
(Grito «NÃO!» à revolução de flores de retórica.)

Revolução das flores?

Sim.
Mas não apenas para disfarçarmos com bandeiras de cravos
o pólen das Áfricas dos nossos lutos.

Queremos flores
que já tragam no ventre
o sabor dos frutos.

(de Maio-Abril / 1968-1975, in Poeta Militante, Viagem do Século Vinte em mim - III, 1978)

23.4.06

MIGUEL DE CERVANTES

[NA SEPULTURA DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA: EPITÁFIO COMPOSTO POR SANSÓN CARRASCO]


Jaz aqui o fidalgo forte
que a tal denodo chegou
que se descubra e se exorte
que a morte não triunfou
de sua vida com sua morte.

Teve o mundo inteiro em pouco;
foi o espantalho e o coco
do mundo, em tal conjuntura,
que abonou sua aventura
morrer cordo e viver louco.

(de Don Quijote, tradução de José Bento)


WILLIAM SHAKESPEARE

SONETO XV


Se considero quanto cresce vivo,
e atinge a perfeição só por instantes;
e que este imenso palco está cativo
de ocultos astros fortes e inconstantes;

se atento que Homem como planta aumenta,
do mesmo céu domado e guarnecido,
e que da seiva juvenil que o tenta
quando é mais forte é que será esvaído;

então o conceito deste incerto estado
mais rico em juventude em mim te cria,
ao ver que o Tempo a te mudar se há dado
em noite escura esse tão claro dia.

Com o Tempo em guerra por amor de ti,
o que el' te rouba, eu te reponho aqui

(tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 seculos)