23.6.17

LÍDIA JORGE


Também a Livraria Assumpção tinha sido atacada de mansidão depois do Natal, ou era dos meus olhos. Quem entrava para comprar adquiria rápido e saía, mas eram poucos e o gerente da loja queixava-se do negócio. Havia contudo pessoas que mansamente pareciam amar os livros, liam-nos aos pedaços, fechavam-nos e voltavam a pô-los nos escaparates com medo de ofender o caixa, com mansidão. A princípio não tinha notado isso, mas aquele Inverno corria manso, sim. Havia sobretudo as prateleiras de absoluta mansidão, onde poucos chegavam e menos abriam, raríssimos compravam. O Sr. Assumpção tinha mandado escrever a Dymo e em verde, POESIA, em maiúsculas. Mas as maiúsculas que o Sr. Assumpção tinha escolhido, se correspondiam ao seu instinto de oferta, não tinham nada a ver com a procura. Às vezes abria as páginas soltas dum e doutro livro dessa estante e tudo me parecia igual, as imagens e os termos repetidos. Acho que procurava a razão mas não encontrava a resposta. Possivelmente a poesia devia viver de associações de elementos de número finito, talvez extremamente finito como a água, o fogo, a lâmina, o círculo, a nuvem, até às últimas energias. Então talvez o ser do ser estivesse já atravessado em todas as direcções e a saturação tivesse sido atingida, donde compreender que ninguém comprasse poesia. Bastava possuir em casa um dicionário e juntar palavras, cruzando-as, descruzando-as, para se encontrar a inovação surpreendente que era apenas roupa da roupa. Descria.
Contudo de vez em quando uma dessas associações caía-me sob os olhos, perseguia-me como uma flecha que se vingasse e acompanhava-me a caminho do autocarro. Bom, mas isso seria por andar com a melancolia afiada. Para ser franca tinha mesmo a impressão de que esses livros possuíam uma sabedoria imanente, porque os dedos corriam as lombadas e encontravam como por azar ou coincidência as páginas que procurava. Vinha-me então a convicção de que alguém as havia escrito para mim com remetente certo. Uma espécie de entretém.


(excerto de Notícia da Cidade Silvestre, 1984)