12.1.18

PEDRO TIAGO


MATAR UM HOMEM

Quando, aqui há uns anos, me perguntaram se era capaz de matar um homem, respondi que sim, mas, na verdade, se me perguntassem isso hoje, penso que responderia o contrário.
A verdade é que já matei homens pelo caminho. A alguns retirei os olhos, tendo-os, depois, guardado numa caixinha de madeira vermelha sob a cama, em cima de um tapete velho. Julgo, com base num conhecimento livresco, e não empírico, que já não existam, só a caixa, talvez apenas com um muco estranho a empapá-la, ou uma secura extrema de cheiro a corpos mortos, quando a abrirem. Mas isto, como quase tudo, não vem ao caso, vem apenas ao texto, num fluxo absurdo através do qual o autor, que temo realmente ser eu, nos leva.
Sei que era incapaz de matar um homem, resumindo, que é o que importa, e não interessando os homens que matei entretanto, que isso, diga-se, foi outra pessoa, perdida numa estase, qualquer, numa onda de tempo que ficou congelada, como se numa fotografia, a perpetuar um gesto, (de assassinato, porque não?), ao longo da eternidade. Ou seja, o que se passa é que este eu, com todo o peso, certamente, de todos os outros anteriores, não era capaz de matar um homem. Aliás: não é capaz de matar um homem. Porque sabe que um homem é uma máquina poética que morre sozinha.


(primeiro poema de O comportamento das paisagens, Artefacto Edições, 2011)



junho

não é tempo para pés nem para pernas e não é tempo
para os outros (quem são os outros?)

tudo arde em itálico, no terraço, duas pessoas perguntam
coisas, uma responde; uma é hiperactiva, outra tem
dislexia, a terceira sofre de anorexia nervosa. todas
pensam em línguas dentro da boca, as línguas ocupam
demasiado espaço, dentro das cabeças, mais do que se
julga. mãos nos parapeitos, pés dentro de chinelos,
a língua dentro da boca, enjaulada nos dentes.

não é tempo para poesia nem para palavras, é tempo
para dormir.


(primeiro poema de a lonely gigolo, do lado esquerdo, 2018)

11.1.18

HELDER GOMES CANCELA


O ICONOCLASTA

Parte dos procedimentos criativos desenvolvidos ao longo do século XX assenta na ideia de que a acção criativa pode operar por um trabalho negativo de profanação dos legados culturais e dos valores artísticos, e de que a subversão pode constituir uma postura artisticamente muito produtiva. Este processo de subversão acompanha o movimento de secularização que inaugurou a modernidade: é a possibilidade de questionar a possibilidade do sagrado que torna possível estender o questionamento à esfera das produções humanas. É a possibilidade de questionamento da lei e da norma de raiz religiosa que torna possível a subversão das regras e das normas artísticas. É o questionamento da sacralidade do passado ou da reverência face às heranças que permite a subversão da tradição.
Mas a arte das últimas décadas é também a demonstração do paradoxo que atravessa quase todas as posições iconoclastas: elas exigem a manutenção da sua pertença à esfera do sagrado como condição da eficácia do gesto de profanação. Implicam, no mínimo, a suposição da natureza culturalmente excepcional da arte, transportando para as relações artísticas os modelos de relação que haviam sido modelados no plano do sagrado. O que daqui resulta é a ressacralização da própria experiência da arte.
Não é inconsciente, nem inocente, a aproximação do profanador à sacralidade do objecto de profanação. Não é inocente, nem inconsciente, a pretensão da sacralidade do gesto de profanação. Num e noutro caso, transportar a arte para o plano do sagrado é supor que é possível fazer dela uma experiência que escapa à racionalidade crítica. E este é o culminar do paradoxo: como pode o iconoclasta pretender que o seu gesto escapa à possibilidade de crítica?



(in O exercício da violência, companhia das ilhas, 2014)