BORIS VIAN
QUERO UMA VIDA EM FORMA DE ESPINHA
Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomanglo
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente
(in Canções e poemas, tradução de Irene Freire Nunes e Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, 1997 - Rei Lagarto)
22.9.07
21.9.07
[para o Hugo, a propósito de relâmpagos]
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
OS AMIGOS
Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta e impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão
1993
(de Musa, 1994)
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
OS AMIGOS
Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta e impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão
1993
(de Musa, 1994)
19.9.07
JOSÉ AUGUSTO SEABRA
(de Fragmentos do delírio, Eurosigno publicações, 1990)
Não cedas à leveza estéril do vento, quando uma respiração fácil te impele ao abandono dos remos e à ancoragem horizontal do olhar, rendido à ondulação flácida, sem prumo. Endurece a espalda das vagas, flectindo as suas vértebras dolentes, até ao âmago da espuma, amuralhada no dorso mineral do ar.
(de Fragmentos do delírio, Eurosigno publicações, 1990)
ALEXANDRE SARRAZOLA
Cruz Quebrada - Dafundo
quatro papagaios mignons cruzam o céu da Cruz Quebrada
verdes e lestos sobre as antenas dos prédios
contra a brancura concreta dos estendais dos terraços
desaparecem dolorosamente como caças japoneses
em acrobacias crepusculares (numa fita muda)
aqueles dois nonagenários (nonagenários era em 89)
de bom grado os guardariam nos olhos: mãos dadas,
a fumar: dando idílicos passeios em círculos
nos quadrados de relva entre os prédios;
eram os dois chineses; tinham vindo de Maputo aonde
haviam chegado de Goa; ele, sempre de boné vermelho,
tinha combatido na de 39-45 ao lado dos japoneses;
eram donos daquele restaurante na Avenida Brasília:
"O Suíça"
ficávamos a ver as mãos dela nas dele, sobre o tampo
de contraplacado azul claro da mesa do café: muito mirrados
a perderem-se no olhar um do outro
quatro papagaios mignons contra o céu da Cruz Quebrada
(cheios de swing)
como figuras envernizadas entre as demais pinceladas baças
um instante de ornitoepifania (em movimento):
eis que rompem o azul sobre os cafés da praça
e me privam da memória dos velhos
(de Thaumatrope, Averno, 2007)
Cruz Quebrada - Dafundo
quatro papagaios mignons cruzam o céu da Cruz Quebrada
verdes e lestos sobre as antenas dos prédios
contra a brancura concreta dos estendais dos terraços
desaparecem dolorosamente como caças japoneses
em acrobacias crepusculares (numa fita muda)
aqueles dois nonagenários (nonagenários era em 89)
de bom grado os guardariam nos olhos: mãos dadas,
a fumar: dando idílicos passeios em círculos
nos quadrados de relva entre os prédios;
eram os dois chineses; tinham vindo de Maputo aonde
haviam chegado de Goa; ele, sempre de boné vermelho,
tinha combatido na de 39-45 ao lado dos japoneses;
eram donos daquele restaurante na Avenida Brasília:
"O Suíça"
ficávamos a ver as mãos dela nas dele, sobre o tampo
de contraplacado azul claro da mesa do café: muito mirrados
a perderem-se no olhar um do outro
quatro papagaios mignons contra o céu da Cruz Quebrada
(cheios de swing)
como figuras envernizadas entre as demais pinceladas baças
um instante de ornitoepifania (em movimento):
eis que rompem o azul sobre os cafés da praça
e me privam da memória dos velhos
(de Thaumatrope, Averno, 2007)
18.9.07
RAUL DE CARVALHO
O perfume que às vezes, à noite, resvala
da madeira para o coração.
Cuidado, coração, não morras:
tudo de ti depende.
Que coisa há, coração,
que não dependa de ti,
de tuas pétalas contínua, continuamente trémulas?
Coração, eu te coloco
no galo de oiro,
no cimo, no cimo da torre!
Coração, eu te coloco
na origem.
Casa imóvel dos músculos,
cérebro sempre cheio,
olhos, olhos meus preferidos
por que substituís
a boca -
É verdade que sois
uma e a mesma
porção de fatalidade?
Peito engolindo
sem dar por isso
o ar da manhã:
Há um sorriso
para trocar
por outro sorriso:
Há uma criança
que quer ser teu filho:
Há um dia que quer
ser bom para ti!
Com versos semelhantes aos teus
eu podia produzir
a tranquilidade.
Com essa desesperada confiança
que tens em ti nos outros na existência em Deus
eu podia produzir
a tranquilidade.
Com esse teu inimitável modo
de ler versos humanos em tom divino
eu podia produzir
a tranquilidade.
Com o teu sangue e o meu
eu podia produzir
a tranquilidade.
IV-55.
(de Poemas inactuais, 1971)
O perfume que às vezes, à noite, resvala
da madeira para o coração.
Cuidado, coração, não morras:
tudo de ti depende.
Que coisa há, coração,
que não dependa de ti,
de tuas pétalas contínua, continuamente trémulas?
Coração, eu te coloco
no galo de oiro,
no cimo, no cimo da torre!
Coração, eu te coloco
na origem.
Casa imóvel dos músculos,
cérebro sempre cheio,
olhos, olhos meus preferidos
por que substituís
a boca -
É verdade que sois
uma e a mesma
porção de fatalidade?
Peito engolindo
sem dar por isso
o ar da manhã:
Há um sorriso
para trocar
por outro sorriso:
Há uma criança
que quer ser teu filho:
Há um dia que quer
ser bom para ti!
Com versos semelhantes aos teus
eu podia produzir
a tranquilidade.
Com essa desesperada confiança
que tens em ti nos outros na existência em Deus
eu podia produzir
a tranquilidade.
Com esse teu inimitável modo
de ler versos humanos em tom divino
eu podia produzir
a tranquilidade.
Com o teu sangue e o meu
eu podia produzir
a tranquilidade.
IV-55.
(de Poemas inactuais, 1971)
AQUILINO RIBEIRO
... Olhem sempre em frente, olhem o Sol, não tenham medo de errar, sendo originais, iconoclastas e anti, o mais anti que puderem, e verdadeiros, fugindo aos velhos caminhos trilhados de pé posto e a todas as conjuras dos velhos do Restelo. Cultivem a inquietação como fonte de renovamento
... Olhem sempre em frente, olhem o Sol, não tenham medo de errar, sendo originais, iconoclastas e anti, o mais anti que puderem, e verdadeiros, fugindo aos velhos caminhos trilhados de pé posto e a todas as conjuras dos velhos do Restelo. Cultivem a inquietação como fonte de renovamento
[palavras proferidas na homenagem que lhe foi prestada na Sociedade Portuguesa de Escritores - citado por António Valdemar, Expresso-Actual, 15 de Setembro 2007, p. 12 - conforme citado (e sublinhado) por masson, no Almocreve da Petas]
17.9.07
JOÃO CAMILO
I
1
É de manhã, os pássaros
cantam. De que infinito guardaram
a nostalgia? Enquanto a desconhecida dorme ainda
ao lado da janela. E eu contemplo o cimo das árvores.
2
Ao lado da janela dormes.
Desconhecida.
E um rio, como esquecer, separa-te da luz.
Um peixe ou pássaro descansa na tua orelha,
a folha - ou som? - é cor nos teus seios.
3
O cabelo desviado da fronte
a construir a margem da orelha.
O seio nu no lençol branco,
página de livro nova
no cheiro e no olhar.
Ventre liso, céu, mar,
viola,
onde se esconde o acorde. Ao lado
da janela dormes. Desconhecida,
e eu sopro sobre as folhas do arbusto,
na solidão do silêncio.
4
O tambor do revólver
roda
à volta no teu sangue.
Melro inquieto das tuas veias.
O ponto de mira no cano
da pistola
descobriu o meu olhar,
acompanha-me:
quotidiano como os minutos
e segundos
do nosso encontro
na escada.
5
As tuas pernas tocam a claridade.
No calor da noite.
Perto das florestas,
na inclinação das colinas.
E aprendes com que colorir-nos
o dia.
Enquanto os teus cabelos acariciam o terror
E despertas repousada.
6
Os teu cabelos alongam-se,
roubam a cor à árvore
(é outono)
e a luz e brilham.
No esconderijo da noite.
O sono: estás distante,
tão calma.
Na sombra das árvores o silêncio
das colmeias
inquieta o pólen das flores.
7
Ao lado da janela,
desconhecida dormes.
Com o sono
- ponte de vidro -
E o teu pé nu.
E o ar que te respira
deixa de esperar
o azul da luz do dia.
8
As árvores em frente de casa
não perderam de vista o teu cabelo.
Imitam
o método de cair no ombro,
a linha, a curva lenta, a cor,
o sobressalto de tocar a orelha.
E eu?
9
Da adolescência das tua pernas,
da sua solidão,
o pequeno caminho conhece a sombra:
calor do mármore.
E o silêncio
- luz e água,
tensão -
que nelas se move.
10
Longe das florestas dormes
desconhecida.
Distante das montanhas,
das colinas.
O algodão do sonho separa-te da sombra,
um arbusto - ou árvore? - adormece no teu rosto.
E eu?
11
A água das fontes,
o calor dos campos,
pulsam no teu corpo.
Desconhecida,
no refúgio do quarto descubro o teu olhar.
Lago escondido, visto
do cimo da montanha?
Página, arbusto, árvore,
folha, peixe, som,
rio,
floresta,
melro.
(de Para a Desconhecida, 1983)
I
1
É de manhã, os pássaros
cantam. De que infinito guardaram
a nostalgia? Enquanto a desconhecida dorme ainda
ao lado da janela. E eu contemplo o cimo das árvores.
2
Ao lado da janela dormes.
Desconhecida.
E um rio, como esquecer, separa-te da luz.
Um peixe ou pássaro descansa na tua orelha,
a folha - ou som? - é cor nos teus seios.
3
O cabelo desviado da fronte
a construir a margem da orelha.
O seio nu no lençol branco,
página de livro nova
no cheiro e no olhar.
Ventre liso, céu, mar,
viola,
onde se esconde o acorde. Ao lado
da janela dormes. Desconhecida,
e eu sopro sobre as folhas do arbusto,
na solidão do silêncio.
4
O tambor do revólver
roda
à volta no teu sangue.
Melro inquieto das tuas veias.
O ponto de mira no cano
da pistola
descobriu o meu olhar,
acompanha-me:
quotidiano como os minutos
e segundos
do nosso encontro
na escada.
5
As tuas pernas tocam a claridade.
No calor da noite.
Perto das florestas,
na inclinação das colinas.
E aprendes com que colorir-nos
o dia.
Enquanto os teus cabelos acariciam o terror
E despertas repousada.
6
Os teu cabelos alongam-se,
roubam a cor à árvore
(é outono)
e a luz e brilham.
No esconderijo da noite.
O sono: estás distante,
tão calma.
Na sombra das árvores o silêncio
das colmeias
inquieta o pólen das flores.
7
Ao lado da janela,
desconhecida dormes.
Com o sono
- ponte de vidro -
E o teu pé nu.
E o ar que te respira
deixa de esperar
o azul da luz do dia.
8
As árvores em frente de casa
não perderam de vista o teu cabelo.
Imitam
o método de cair no ombro,
a linha, a curva lenta, a cor,
o sobressalto de tocar a orelha.
E eu?
9
Da adolescência das tua pernas,
da sua solidão,
o pequeno caminho conhece a sombra:
calor do mármore.
E o silêncio
- luz e água,
tensão -
que nelas se move.
10
Longe das florestas dormes
desconhecida.
Distante das montanhas,
das colinas.
O algodão do sonho separa-te da sombra,
um arbusto - ou árvore? - adormece no teu rosto.
E eu?
11
A água das fontes,
o calor dos campos,
pulsam no teu corpo.
Desconhecida,
no refúgio do quarto descubro o teu olhar.
Lago escondido, visto
do cimo da montanha?
Página, arbusto, árvore,
folha, peixe, som,
rio,
floresta,
melro.
(de Para a Desconhecida, 1983)
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