4.1.14

[faz hoje 49 anos que morreu]

T. S. ELIOT


PRELÚDIOS

I

A tarde de Inverno instala-se
Com o cheiro de bifes nas passagens.
Seis horas.
Os fins queimados de dias fumarentos.
E agora uma chuvinha borrascosa embrulha
Os sujos fragmentos
De folhas aos nossos pés
E jornais vindos de lotes de terrenos vagos.
Os aguaceiros batem
Em gelosias partidas e vasos da chaminé,
E na esquina da rua
Um cavalo de trem, solitário, fumega e bate com as patas no chão
Depois, acendem-se os candeeiros.

II

A manhã toma consciência
De um leve e choco cheiro a cerveja
Que vem da rua juncada de serradura
Com todos os pés que se apressam
Para os estabelecimentos matinais de café.
Entre os outros mascarados
Que o tempo continua
Lembramo-nos de todas as mãos
Que estão a erguer estores sujos
Num milhar de quartos mobilados.

III

Arrojaste o lençol da tua cama
Deitaste-te de costas, e esperaste;
Dormiste, e a noite revelou-te
As milhentas sórdidas imagens
De que a tua alma era formada;
Voltejaram tontas contra o tecto.
E quando o mundo todo regressou
E a luz se infiltrou entre as portadas,
E ouviste os pardais pelas sarjetas.
Tiveste uma visão da tua rua
Que a própria tua rua não conheceria;
Sentada na borda da cama, onde
Tiraste os papelotes do cabelo
Ou pegaste nas plantas amarelas dos teus pés
Com as palmas sujas das mãos ambas.

IV

A sua alma esticada firme nos céus
Que se apagam atrás de um quarteirão
Ou pisada por insistentes pés
Às quatro horas e cinco e seis horas;
E dedos curtos e quadrados enchendo cachimbos
E jornais da tarde, e olhos
Seguros de certas certezas
A consciência de uma rua escurecida
Impaciente de assumir o mundo.

Comovo-me por fantasias que se curvam
À volta destas imagens, e persistem;
A noção de uma coisa infinitamente gentil
E infinitamente sofredora.
Limpa a boca com a mão, e ri;
Os mundos andam à roda como mulheres velhas
A colherem madeira nos lotes vagos.


(in Antologia Poética, estudo prévio, selecção e tradução de José Palla e Carmo, publicações Dom Quixote, 1988 - Poesia Século XX)

30.12.13

JOANA DA GAMA


Soneto

Quem consigo puder o desejo enfrear
Estará livre de esperanças compridas
Que com suas tardanças consumem as vidas
E a todos estados dão muito pesar,

E o tempo se nos vai sem nos aproveitar.
De tamanhas mágoas andemos temidas,
Pera quantas vierem bem apercebidas,
Por que com as virtudes nos possamos pagar

Com desejo perfeito de as sempre seguir.
Julguemos o porvir pelo que é passado,
Que tudo a ua medida se há-de medir.

Não gastemos o tempo mal gastado,
Que esta é a perda que é mais de sentir,
Quem da graça de Deus estiver dotado.


(de Ditos da Freyra. Ditos diversos feytos por hua Freyra da Terceyra regra. Nos quaes se cõtê sen têças muy notáveis, e avisos necessarios, Évora, André de Burgos, 1555 / reproduzido em Uma Antologia Improvável - A Escrita das Mulheres (Séculos XVI a XVIII), organização de Vanda Anastácio, Relógio d'Água editores, 2013)

29.12.13

JOSÉ AUGUSTO SEABRA


DAS CINZAS

Lançar ao largo as cinzas diluídas
onde se esvai o rasto de entrever
o sonho ténue onde bordeja o início
da luz dourando a margem a morrer.

É isto indício ou nem sequer o resto
do que não foi nem há-de vir a ser?


DO INDEFINIDO

Enseada do fim
debruada nas águas
efémeras, sem mitos
nem mágoas.

No aqui
do nada
indefinido.


DO AZUL

Da franja diluída
que ao vento se incendeia
não toco nem a esquiva
transparência. Clareia
o fogo a lume brando
do rubor que tacteia
o azul e desmaia.


(de Do Nome de Deus, Instituto Cultural de Macau, 1990)