próspero saíz
O SILÊNCIO DE LASCAUXSou o cavalo arcaico e
nada me está interdito
animal sonho amortalhado
mergulhado na noite
imperscrutável tempo perdido
escuro ritmo animal
a negra juba dançando
o cavalo vermelho correndo ainda
negrume medonho
silêncio e temor sagrado
piso o solo animal
na caverna escura do pavor e do temor
regresso ao meu destino primeiro...
cascos e chifres silentes
figuras gravadas
sou eu o cavalo pintado!
de olhos mutilados
tremeluzir de chamas
tocha paleolítica
fumo na pedra
cavalo vermelho correndo
cavalos castanhos correndo
delicados "cavalos chineses"
cavalinhos pequenos e cabras alpinas
o vigor do toiro
obscura luz do desejo
passos mortais da dança
ocultos nas máscaras do homem...
não temo o animal
não temo o homem sem jeito
sou o cavalo a galope
sinto o cheiro do negro toiro
as minhas narinas ávidas
dançam-lhe por entre os chifres antigos
as minhas ancas esgueiram-se por entre
a magia da pedra pintada:
a juba fofa e o brilho fulvo
o gesto de monumento da cabeça robusta...
mas ao sonho do homem falta-lhe a força
não tolera o movimento do cavalo
não tolera os jogos de cascos e juba
não tolera as profundezas do tempo-do-cavalo
e por isso se precipita no futuro torturado...
porém no silêncio de lascaux um hálito se sente
e nasce um deus no pavor dos homens pintores...
os negros ouvidos e olhos doirados do cavalo ruivo
a juba espessa e o peito pesado (ressonâncias do nosso sonhar)
escuros cascos e pernas hirtas penetrando o nada
a cabeça em liberdade apontando para o fundo nada
um relincho de pânico na boca escancarada - obra do homem -
nosso sonho arrebanhado na rocha até à beira do abismo
que conseguiram captar os pintores ausentes?
inaudito galope em tropel do pujante garanhão
resplendor animar recusando a orla da humana passada...
no silêncio de lascaux esvai-se uma luz trémula
do lado de fora da caverna ainda estão os ossos da matança
vestígios de massacres por entre os penhascos de pedra
e por entre as ossadas equinas tropeçam póneis atarracados
nos braços ténues do temor sagrado do cavalo...
(tradução de Maria Irene Ramalho, in
Limiar - revista de poesia, 7, 1996)