8.8.08

[se sou alguma coisa sou-o sem saber]





[Estou em agosto estou um pouco em agosto]


RUY BELO


COMO SE ESTIVESSE EM AGOSTO


Estou todo no mês de agosto
Estou escarranchado no lombo nutrido de agosto
sentado à mesa de um café envolto no manto de múltiplas vozes
olhando pela janela uma toalha de mar e a terra ao fundo
debaixo do céu azul e branco do sol e do vento
café e vozes céu terra e mar tudo coisas talvez de agosto
objectos que o deus deste mês se porventura dada a fartura houver também um deus para os meses
utiliza para que assim toda a gente possa falar univocamente de agosto
e agosto não seja o nome frio dos números
mas seja um tempo e a orla da água que banha os pés desse tempo
e as coisas que existem na mão aberta desse tempo
Agosto não é o oitavo mês do ano
as ferias há muito previstas e marcadas o sitio
de certos rostos por um instante resplandecentes mas cedo bebidos pelo esquecimento
talvez para o ano vindos na vaga de um novo mês de agosto
Agosto são muitos jornais vagarosamente lidos
de páginas uma a uma passadas como os trinta e um dias deste mês
agosto é o espaço do pensamento da boca boquiaberta
do sol outra vez usado como o único relógio de pulso
Agosto é o regresso dos emigrantes o mês da morte na estrada dos emigrantes
de uns homens que antes eram portugueses e hoje são emigrantes
e voltam a estas paragens como as aves às terras serenas e avaras do norte
Agosto é a estrada estreita que o mar enfia nos campos
como faca que fura sebes de canas campos de couves
e ensombra ainda um pouco mais a sombra de certas árvores
Agosto é eu estar aqui a trazer as mangas arregaçadas
é envelhecer ao sol na dispersão distraída de determinados gestos
é saber que estou de momento separado de secretárias com muitos problemas em suspenso
que me sento numa pedra e oiço uma música e reconheço a minha forma mais frequente de me sentir vivo
embora depois complique o que sinto e diga talvez que me sinto feliz
Por vezes agosto é o nevoeiro essa espessura de certa maneira branca
que me faz pensar que penso e achar que há uma certa profundidade no que por vezes penso
nevoeiro que mora um tempo na minha cabeça e depois
desce até às páginas do livro que leio de maneira diferente
dos livros que leio nos outros meses do ano
Agosto não é a pura palavra não é determinada designação para um tempo
onde cada uma dessas coisas anualmente se encontra comigo
Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde procuro pôr os meus passos
onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que no frágil edifício dos dias
Não escrevo neste domingo de agosto onde já houve sinos
e há gestos diferentes dos mesmos gestos que fazemos nos outros dias
Estou um pouco nestas palavras na própria
palavra agosto que ponho sobre o papel
e que embora aponte para agosto não é esse mês de agosto
Estou em agosto estou um pouco em agosto

(de Toda a Terra, 1976)
EDUARDO PRADO COELHO

RUY BELO – A CAMINHO DA ESCOLA
(excerto)

(…)
Se existe uma equivalência entre o poema que se escreve e o caminhar na vida («um só poema é toda a vida de um homem» [da explicação que acompanha a 2ª edição de Aquele Grande Rio Eufrates]), é natural que os poemas de Ruy Belo se alonguem, que sejam demorados exercícios no sentido de o poeta se afeiçoar à prática da morte, instrumentos dilatórios para suspender o ponto final.
Isto explica talvez que a morte, sendo, como é, o decisivo virar de uma esquina, tenha em Ruy Belo uma existência graduada. Há uma dosagem da morte cada dia e é o trabalho da escrita / deambulação que regula essa dosagem. Por conseguinte, «ó homem que tens à espera de ti / virada a esquina da rua e do tempo o teu próprio rosto / não tenhas pena de quem morre / de árvore para árvore / e é diferente no princípio e no fim da rua» [Metamorfose, in Aquele Grande Rio Eufrates].
Na poesia de Ruy Belo, morre-se muito, morre-se pouco, assim assim, um bocadinho. Mas, se isto faz que a morte se insinue no dia, permite também que o dia contenha a morte. Lemos assim: «ele vai só ele não tem ninguém / onde morrer um pouco toda a morte que o espera» [Homem para Deus, in Aquele Grande Rio Eufrates]; «nunca até hoje eu morrera tanto em alguém» [Vita mutator, in Aquele Grande Rio Eufrates]; «Terás no fim para nós uma morte tão funda / que nos separe de todo o mal que fizemos / e assim nos aproxime do bem que desejámos?» [Narração, in Aquele Grande Rio Eufrates]; «Eu não dispenso a morte eu quero morrer muito» [Mudando de assunto, in Homem de Palavra(s)].

Mas, no termo da estrada, para além da estrada, para além do horizonte, essa morte imensa é tão grande como o mar ou a infância.
(…)

(in A Mecânica dos Fluidos – literatura, cinema, teoria, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1984 – temas portugueses)
JOSÉ MÁRIO SILVA


A MARGEM DA MELANCOLIA
(excertos)

(...) Foi tanta a água, Ruy, que passou debaixo das pontes. E agora, assim de repente, vejo-me a escrever esta prosa que não sei o que é, nem para onde vai, vejo-me a enviar uma carta sem destinatário a alguém que não conheci, a uma figura que sempre se materializou, para mim, em dez livros e umas quantas fotografias. Escrevo sobre o fio da navalha, é bom que saibas, arriscando a queda no ridículo, abrindo o peito à confissão e deixando de lado as cautelas que é costume exigir ao jornalista. Corro o risco, e assumo esse risco, de escrever à procura de uma intimidade que nunca existiu, que muitos dirão ser falsa e a que provavelmente não tenho direito. Mas ainda assim escrevo e avanço linha a linha, à beirinha do abismo, procurando não olhar para baixo, pensando apenas que de certa forma sou teu amigo próximo desde sempre, desde que me feriste com um verso que falava da solidão e da morte. Por isso escrevo ainda, sem saber em que direcção, porque repito para mim mesmo que sou teu amigo desde sempre e que os amigos tratam-se por tu, os amigos olham-se nos olhos, os amigos sabem perdoar os desvarios feitos em nome da amizade.
Passou muito tempo, 20 anos. E confesso-te desde logo que ignorei a tua morte na inocência dos meus seis anos. Era Agosto e eu brincava certamente na praia, em luta contra as ondas da Caparica, procurando pequenas conchas e correndo sobre a areia. Era verão e eu ainda não sabia ler (só entrei para a escola em Outubro). Era verão e eu não podia imaginar que as notícias do dia seguinte explicavam mal a causa da tua morte (estou convencido que se alguém abrisse aquele coração destroçado, numa imaginaria autopsia, não encontraria lá dentro uma única gota de sangue, mas sim milhões de minúsculas sílabas: puras, brilhantes, perfeitas).

(...)

Volto ao tema da morte, mais uma vez,. e se pudesse estar contigo agora, face a face, gostaria que me explicasses se foi por causa desse enigma paralisador, dessa definitiva suspensão do tempo, que começaste a escrever poemas tão longos. Posso estar enganado, mas vejo nesses poemas que se estendem por páginas e páginas, acumulando detalhes e repetindo palavras («Nada sei de emoções manipulo morfemas», disseste algures), vejo nessas intermináveis sucessões de versos uma espécie de fuga para a frente, como se temesses o vazio que fica depois da última palavra. Enquanto escrevias, o mundo e as suas torturas mantinham-se à distância e tu sentias-te isolado numa esfera de silêncio, sentias-te salvo no único paraíso possível, não era?
Continuo a olhar para ti. Ou antes, para a imagem que do teu rosto no meu pensamento. E digo-te, sem hesitar, que não alinho com os críticos que veneram a tua obra por inteiro. Mentiria se não dissesse que há versos frágeis, metáforas infelizes, poemas inúteis, rimas escusadas e cacofonias incómodas. Ter consciência de que existem – apontá-las a dedo se for preciso – não diminui em nada a tua grandeza poética nem belisca a admiração que tanta gente nutre por ti. Aliás, sabes tão bem quanto eu que a perfeição é própria dos deuses. E a imperfeição só te torna humano, ainda mais humano.
Afirmei no princípio que ignorava para onde se dirigia esta prosa. Era a mais pura das verdades. Escrevi de um jacto, sem plano nem estrutura, aqui e ali à flor da pele. Reparo agora que me aproximo do limite. Estou próximo do fim da página, tão próximo como do tal abismo que se abre aos pés de quem escreve sem rede. E ainda não disse metade do que queria dizer. Ainda não falei desse refúgio que era para ti a praia da Consolação; ainda não falei da fotografia em que apareces a olhar o horizonte como se o «bateau îvre» do Rimbaud estivesse a passar ao largo; e ainda não falei de todas as coisas que às vezes as palavras (as tuas e as minhas) não conseguem exprimir.
Morreste há 20 anos. Vinte anos exactos, contados dia a dia. Mas fica a saber que deixaste neste lado do rio, nesta margem melancólica (melancólica porque te sabe ausente), marcas que não se apagam. E sabes porquê? Porque foram deixadas por um homem lúcido que olhou a morte de frente. E soube fazer de cada verso uma despedida.

(in DNa Nº 89 – 8 de Agosto de 1998)

7.8.08

SANDRA COSTA

Por vezes, junto à claridade da manhã,
descubro que as palavras não me pertencem,
que o sopro que lhes dou é ainda
mais aparente do que certas imagens
reveladas pelos espelhos e que usá-las,
por exemplo, para descrever a melancolia
é esperar demais dos lábios - porque o que
se quer é só o esforço de contemplar uma flor
ou uma pedra na berma da estrada –

(de A vocação dos homens silenciosos, Cosmorama, 2006)

6.8.08

ELIAS SIMOPOULOS

SEIS DE AGOSTO

I
A Página Branca


Manhã alta. Fatigada cidade.
Calma a cidade.
Como em todas as tardes.
Nada anuncia
este inferno de fogo,
esta bárbara invasão do incêndio
que fica maior, incrivelmente maior,
depois da catástrofe.
A glória selvagem da noite iluminada
que em versos de lume
em versos de brilho maravilhoso
escreve o destino do mundo.

Hoje
seis de Agosto
de mil novecentos e quarenta e cinco
procuramos a página branca
de amanhã.


II
A Obra do Incêndio


Hiroshima está morta. Hiroshima
não existe. A obscuridade da tarde
estendeu crepes negros
sobre a terra transtornada
e as casas devoradas pelo incêndio.
Descansai, instrumentos do vento.
Descansai, mandíbulas do incêndio.
O vosso trabalho acabou.
Os homens, fantasmas incontroláveis,
morrem nas ruas em chamas
despedaçando o silêncio da noite
com seus gritos
de horror.
- Vento, salva-nos da destruição e do nada.
- Chuva, salva-nos dos dentes do incêndio.
- Fogo, salva-nos das sombras da noite.


III
A Lamentação do Mundo


Carpideiras, a vossa hora chegou de vez. A morte
não espera. A morte não espera. A morte.
Quem conduziu a morte à vossa porta?
Quem abriu este profundo tumulo em nosso coração?

Lamentações e incêndios extinguiram-se.
Já não existe a cidade.
Nas ruas os derradeiros vivos, fantasmas,
correm derramando gritos desarticulados,
marchando sobre
montanhas de cadáveres queimados
e troncos sem cabeças,
e há gemidos e queixas de crianças,
terríveis maldições de mães na
hora do parto, na hora da agonia,
notas inaudíveis da mais trágica lamentação
da história do mundo.


IV
Fim do Mundo


O mar transformado em rasca envia raios e relâmpagos.
O céu é tempestade e chuva de ferro e fogo.
A terra é um vulcão e vomita chumbo derretido.

Este é o sangue que bebemos
na taça da nossa miséria e onde nos embriagamos
no excessivo calor do mês de Agosto
que acende a nossa febre. As cerejeiras
floridas, cobertas de lâmpadas, iluminam
as mãos disseminadas dos órfãos.
As inumeráveis multidões de estrelas
olhando-nos com tristeza. As nuvens
dos pássaros vestidos de luto
cobrindo o céu, calando o angustioso pesadelo…
Ah! quem dissipasse tudo isto
quando vier o dia!

Mas se tudo isto não é loucura e sonho,
se tudo isto não é febre e embriaguez,
então em verdade chegou
a consumação do mundo.


V
A Mão


Verdadeiramente
ninguém perguntou
o que transformou a mão
que lançou a bomba
sobre Hiroshima?

Ela circula
perto de nós, nas ruas,
como todas as mãos
do mundo, trabalhando
a terra, escrevendo
versos, fazendo
o sinal da cruz,
acarinhando a fronte
da mãe, os cabelos
da amada, as faces
de veludo das crianças.

Ou está espreitando
na confusão da
noite, o dedo
no gatilho, pronta
a aniquilar o que
resta do incêndio
de Hiroshima?

Verdadeiramente
nunca pensastes
na hora em que apertais,
calorosamente, outra mão,
diante de todas as mãos
do mundo, nunca
pensastes na mão
que lançou a bomba
sobre Hiroshima?


VI
Nosso Grande Irmão


Robert Oppenheimer,
nosso grande irmão,
qual o anjo
que te assiste,
qual o demónio
que te escarnece,
enquanto, inclinado
sobre tuas equações
de múltiplas incógnitas
abrias a rota dos sputniks,
desenhavas as avenidas dos planetas
e sonhavas o amor
e sonhavas a paz
e gravavas sobre o parto da esperança
o luminoso futuro do mundo?

Mas o futuro do mundo
não se escreve
com línguas de fogo.
Não o sabias?
Por que não te lembravas
dos humildes pescadores
de Hiroshima? As cerejeiras floridas
nas margens da Primavera? Os sorrisos
das crianças? As raparigas
de corpos de cipreste
e de sobressaltos amorosos?

O amor não tem pátria.
O céu não tem pátria.
O sol não tem pátria.
O futuro do mundo está nos nossos corações.

Como te esquecias de tudo isto
enquanto, inclinado sobre as
tuas equações, de múltiplas
incógnitas, semeavas
a ruína em Hiroshima?


VII
A Vida Nova


Não quero chorar.
Eu cantarei
a Primavera triunfante,
que leva a nossa dor
para longe desta devastação
na hora do Inverno.

Não quero chorar.
Eu irei pelos campos ouvir
o belo poema da Primavera
no pensamento das rosas,
ouvir a voz do rio que
leva os barcos
com todos os contos de
fadas, que o avô contava,
com todos os sonhos da juventude.

Saúde e alegria para ti, Vida, que vens!
Saúde e alegria para ti, Vida, que trazes
à nossa casa a certeza e o sol
ao nosso coração. Um
mar sorri, para que nele afoguemos
nossa tristeza, e as estrelas
iluminarão, nas trevas,
os nossos sonhos.

No alto céu
cada um de nós colherá uma estrela.
Não somos agora
fantasmas da noite.
Porque todos os caminhos,
juncados de flores, nos conduzem
à região luminosa do Futuro.

(tradução de Jonas Negalha, in Mákua – antologia poética 5-6, publicações Imbondeiro, 1964)