8.8.08

JOSÉ MÁRIO SILVA


A MARGEM DA MELANCOLIA
(excertos)

(...) Foi tanta a água, Ruy, que passou debaixo das pontes. E agora, assim de repente, vejo-me a escrever esta prosa que não sei o que é, nem para onde vai, vejo-me a enviar uma carta sem destinatário a alguém que não conheci, a uma figura que sempre se materializou, para mim, em dez livros e umas quantas fotografias. Escrevo sobre o fio da navalha, é bom que saibas, arriscando a queda no ridículo, abrindo o peito à confissão e deixando de lado as cautelas que é costume exigir ao jornalista. Corro o risco, e assumo esse risco, de escrever à procura de uma intimidade que nunca existiu, que muitos dirão ser falsa e a que provavelmente não tenho direito. Mas ainda assim escrevo e avanço linha a linha, à beirinha do abismo, procurando não olhar para baixo, pensando apenas que de certa forma sou teu amigo próximo desde sempre, desde que me feriste com um verso que falava da solidão e da morte. Por isso escrevo ainda, sem saber em que direcção, porque repito para mim mesmo que sou teu amigo desde sempre e que os amigos tratam-se por tu, os amigos olham-se nos olhos, os amigos sabem perdoar os desvarios feitos em nome da amizade.
Passou muito tempo, 20 anos. E confesso-te desde logo que ignorei a tua morte na inocência dos meus seis anos. Era Agosto e eu brincava certamente na praia, em luta contra as ondas da Caparica, procurando pequenas conchas e correndo sobre a areia. Era verão e eu ainda não sabia ler (só entrei para a escola em Outubro). Era verão e eu não podia imaginar que as notícias do dia seguinte explicavam mal a causa da tua morte (estou convencido que se alguém abrisse aquele coração destroçado, numa imaginaria autopsia, não encontraria lá dentro uma única gota de sangue, mas sim milhões de minúsculas sílabas: puras, brilhantes, perfeitas).

(...)

Volto ao tema da morte, mais uma vez,. e se pudesse estar contigo agora, face a face, gostaria que me explicasses se foi por causa desse enigma paralisador, dessa definitiva suspensão do tempo, que começaste a escrever poemas tão longos. Posso estar enganado, mas vejo nesses poemas que se estendem por páginas e páginas, acumulando detalhes e repetindo palavras («Nada sei de emoções manipulo morfemas», disseste algures), vejo nessas intermináveis sucessões de versos uma espécie de fuga para a frente, como se temesses o vazio que fica depois da última palavra. Enquanto escrevias, o mundo e as suas torturas mantinham-se à distância e tu sentias-te isolado numa esfera de silêncio, sentias-te salvo no único paraíso possível, não era?
Continuo a olhar para ti. Ou antes, para a imagem que do teu rosto no meu pensamento. E digo-te, sem hesitar, que não alinho com os críticos que veneram a tua obra por inteiro. Mentiria se não dissesse que há versos frágeis, metáforas infelizes, poemas inúteis, rimas escusadas e cacofonias incómodas. Ter consciência de que existem – apontá-las a dedo se for preciso – não diminui em nada a tua grandeza poética nem belisca a admiração que tanta gente nutre por ti. Aliás, sabes tão bem quanto eu que a perfeição é própria dos deuses. E a imperfeição só te torna humano, ainda mais humano.
Afirmei no princípio que ignorava para onde se dirigia esta prosa. Era a mais pura das verdades. Escrevi de um jacto, sem plano nem estrutura, aqui e ali à flor da pele. Reparo agora que me aproximo do limite. Estou próximo do fim da página, tão próximo como do tal abismo que se abre aos pés de quem escreve sem rede. E ainda não disse metade do que queria dizer. Ainda não falei desse refúgio que era para ti a praia da Consolação; ainda não falei da fotografia em que apareces a olhar o horizonte como se o «bateau îvre» do Rimbaud estivesse a passar ao largo; e ainda não falei de todas as coisas que às vezes as palavras (as tuas e as minhas) não conseguem exprimir.
Morreste há 20 anos. Vinte anos exactos, contados dia a dia. Mas fica a saber que deixaste neste lado do rio, nesta margem melancólica (melancólica porque te sabe ausente), marcas que não se apagam. E sabes porquê? Porque foram deixadas por um homem lúcido que olhou a morte de frente. E soube fazer de cada verso uma despedida.

(in DNa Nº 89 – 8 de Agosto de 1998)

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